Mais conversa, menos exames e remédios: o que propõe o movimento por "Medicina sem Pressa"
Recém-chegada ao Brasil, filosofia recebe críticas de médicos ao condenar campanhas de conscientização do câncer de mama e próstata, que classificada de ação "de marketing" que leva a procedimentos invasivos desnecessários.
Uma medicina mais lenta e atenta às necessidades individuais de cada
paciente, que priorize o diagnóstico clínico - e não os exames - e a
prevenção em vez da medicação.
Esses são alguns dos pontos defendidos pelo movimento Slow Medicine
("medicina sem pressa", em tradução livre), que desembarcou há pouco no
Brasil.
Trata-se da versão medicinal de uma filosofia que teve origem na
gastronomia em 1986, na Itália, e ganhou em 2004 sua bíblia, o livro
Devagar - Como um Movimento Mundial está Desafiando o Culto da
Velocidade (Record), do jornalista britânico radicado no Canadá Carl
Honoré.
Ao destrinchar um movimento que pede calma numa sociedade estressada
pela pressa, o autor agradou leitores de todo o mundo e acabou na
estante dos mais vendidos. E a moda "Slow" ganhou adeptos ao redor do
planeta - e em diversas áreas.
Na medicina, o termo foi usado pela primeira vez pelo cardiologista
italiano Alberto Dolara, num artigo publicado em 2002. Para ele, o
movimento Slow seria uma contrapartida ao "constante impulso de
aceleração na sociedade moderna".
Consultas mais demoradas são um dos pilares da filosofia - a ideia é
que o paciente seja visto como uma pessoa completa, não como um conjunto
de enfermidades -, mas há outros aspectos envolvidos.
Entre eles estão o compartilhamento das decisões, a ênfase na saúde e não na doença e a prevenção como terapia.
As propostas, no entanto, recebem críticas de outros especialistas, que defendem haver outras prioridades na medicina.
"Até louvo as entidades que queiram ter uma medicina mais
personalizada", disse o ex-presidente da Sociedade Brasileira de
Urologia Aguinaldo Nardi.
"É o que nós devíamos ter mesmo. Mas estamos muito longe disso."
Para o médico, porém, o primeiro passo seria ter um bom sistema de
saúde global. "Nós ainda estamos longe de ter uma saúde de qualidade
para todos", afirmou.
Menos remédios e exames
Já os entusiastas da Slow Medicine afirmam que suas propostas poderiam
baratear o sistema de saúde ao propor, por exemplo, um menor uso de
medicamentos e exames.
"Acho nossos remédios uma maravilha", afirmou o clínico-geral, geriatra
e cofundador da Slow Medicine no Brasil José Carlos Aquino de Campos
Velho.
"Hoje temos a possibilidade de curar ou controlar doenças que até 20
anos atrás matavam. Mas a questão é o uso abusivo e excessivo de
medicamentos".
Segundo ele, é preciso questionar, por exemplo, certos casos em que drogas são utilizadas como instrumento de prevenção.
"Um paciente com colesterol alto, mas que nunca teve nenhum episódio
cardíaco mais grave, não fuma, não tem histórico familiar de doença do
coração e se exercita, talvez não deva tomar remédio", disse.
Isso porque, avalia, é necessário medicar uma população enorme para se
evitar um único infarto - o que aumenta os custos de planos particulares
e do Sistema Único de Saúde (SUS).
Por outro lado, afirma, cria-se uma ampla gama de pacientes sujeitos
aos efeitos colaterais dos medicamentos, como mialgia, miopatia,
diabetes e problemas cognitivos.
Outro aspecto da medicina atual que é criticado pelos adeptos da Slow Medicine é o excesso de pedidos de exames.
Para Campos Velho, o fenômeno traz uma série de problemas, que vão dos
custos elevados, ao estresse, muitas vezes desnecessário, de um paciente
que tem de aguardar uma semana para saber, por exemplo, que aquela
manchinha de nascença não se transformou em um câncer fatal.
"Não é que a gente seja contra os exames", disse. "Mas a gente defende
que isso deve ser individualizado. Que a decisão deve ser tomada de
maneira consciente pelo paciente, depois de ele ser informado sobre os
riscos e benefícios que pode ter."
Campos Velho usou como exemplo uma dor nas costas.
"Se não tiver nenhum indicador que possa sinalizar um problema mais
sério como um câncer, por exemplo, não se deve nem fazer um exame de
imagem".
"Porque ao fazer uma ressonância ou um raio-X, é provável que se
encontre alterações que talvez nem tenham relação com a dor, mas que
possam ser passíveis de procedimentos."
A solução para casos como esse? Tempo, responde o médico. Se necessário
medicar com analgésico e anti-inflamatório e esperar para ver como os
sintomas se comportam, afirma.
O caso hipotético do paciente com dor nas costas ilustra o oitavo dos
10 princípios da Slow Medicine: colocar a segurança do paciente em
primeiro lugar. E se completa com a ideia de que, na dúvida, para evitar
um mal maior, o médico deve abster-se de intervir.
Contra o azul e o rosa
O movimento Slow Medicine ganha uma boa dose de polêmica por se colocar
contra campanhas como o Outubro Rosa, voltado à prevenção do câncer de
mama, e o Novembro Azul, que incentiva o diagnóstico precoce de câncer
de próstata.
"Virou uma campanha de marketing que gera um grande número de solicitação de exames", opina Campos Velho.
"Muitos desses exames acabam gerando procedimentos e muitos desses
procedimentos são invasivos e levam a cirurgias que podem causar
impotência e incontinência urinária", afirmou o geriatra, referindo-se
ao Novembro Azul e aos exames para identificar câncer de próstata.
Segundo ele, além dos falsos positivos, há um grande número de
pacientes que vai, sim, desenvolver o câncer, mas que, por estar em
idade avançada ou sofrendo de males diversos, acabará morrendo por
outros motivos.
A opinião de Campos Velho ecoa um artigo do urologista Marcio D'Imperio, publicado no site da Slow Medicine Brasil.
O texto cita dados de um estudo publicado em 2012 pelo semanário
científico americano New England Journal of Medicine, que acompanhou 180
mil homens entre 50 e 74 anos.
Os resultados indicaram que, ainda que tenham sido diagnosticados mais
tumores, a mortalidade geral dos pacientes que fizeram rastreamento por
meio do exame PSA e dos que não fizeram foi praticamente a mesma: de
aproximadamente 18%.
Além disso, apontaram que, ao se fazer exames numa população ampla, sem
triagem prévia, evita-se apenas uma morte para cada 1.055 homens
examinados.
Campanhas como incentivo
O urologista Aguinaldo Nardi, do comitê científico do Instituto Lado a
Lado pela Vida (organização que criou a campanha Novembro Azul),
questionou os dados do estudo citado por D'Imperio.
Entre outras críticas, Nardi afirmou que uma parte dos pacientes, que
não tiveram os níveis de PSA monitorados durante a pesquisa, havia feito
outros exames para identificar o câncer de próstata.
Ele também rebateu críticas da Slow Medicine ao excesso de exames e às
campanhas de conscientização.
"Como médicos, nosso dever é informar a
população", disse.
Segundo Nardi, campanhas como o Novembro Azul e o Outubro Rosa muitas
vezes servem como incentivo para que a população tenha contato com um
médico, o que pode levar à identificação de outros problemas de saúde.
Ainda de acordo com o urologista, no caso do câncer de próstata o maior
problema não está na realização ou não de exames, mas no que está sendo
feito com os pacientes que apresentam a doença.
Nardi afirmou que dos 69 mil casos de câncer de próstata detectados em
2015, 36 mil deveriam ser tratados em cirurgias feitas pelo SUS.
Mas apenas seis mil foram operados. Ou seja, segundo o urologista
existem 30 mil pacientes "perdidos no limbo do sistema público de
saúde".
Paciente Slow
Polêmicas à parte, as ideias da Slow Medicine vêm conquistando adeptos.
O bancário aposentado Moacir Mariscal, por exemplo, passou 20 de seus
65 anos monitorando um órgão cuja existência sequer notaria, não fosse a
medicina moderna: a próstata.
A despeito do sobrepeso, fator de risco genérico que aumenta também as
chances de desenvolver vários tipos de câncer, os níveis de PSA de
Mariscal sempre estiveram dentro da normalidade.
Os exames periódicos, contudo, continuaram até que, em março, numa
consulta com o geriatra Campos Velho e após confabularem sobre o
assunto, médico e paciente, decidiram deixar a próstata em paz.
"Ele me disse que, com todos esses anos de resultados normais, não
precisávamos mais fazer exame. E eu confiei na decisão dele", disse
Mariscal.
O aposentado, que vê com bons olhos o movimento Slow e a Medicina sem
Pressa, anda irritado com a boa e velha "medicina apressada".
Diante da dificuldade em marcar uma consulta com a dermatologista para
checar uma mancha dolorida na perna - só havia horário para o fim de
janeiro -, Mariscal resolveu buscar uma clínica particular de múltiplas
especialidades, dessas que se apresentam como alternativa aos planos de
saúde.
A consulta durou cinco minutos, com uma médica que mal o olhou nos olhos, lembrou Mariscal.
O resultado? Um pedido de exame.
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