Aluna de escola pública inventa monitor cardíaco para sonâmbulos
Em projeto de iniciação científica, Nathália Souza desenvolveu protótipo que será testado em pacientes com ajuda de empresa estrangeira.
Um projeto de iniciação científica na escola pode se transformar em
oportunidade de trabalho para a adolescente paulistana Nathália Souza de
Oliveira, de 17 anos.
Interessada em medicina, ela idealizou e desenvolveu, com a ajuda dos
professores da Escola Estadual Alexandre Von Humboldt, em São Paulo, um
monitor cardíaco para pessoas com sonambulismo, que pode ajudar a evitar
acidentes domésticos.
Com o projeto, Nathália é finalista do prêmio principal da Feira de
Ciências de São Paulo, o principal evento do tipo no Estado. E uma
parceria entre a escola e uma empresa americana no Brasil devem garantir
testes em pacientes com o distúrbio.
"Eu sempre quis fazer algo na área de medicina, especialmente em
neurologia. Pesquisando, vi que o sonambulismo não é tratado como
doença, mas pode causar acidentes. Pensei em criar algo que ajudasse a
fazer com que esses acidentes não acontecessem mais", disse Nathália à
BBC Brasil.
"Pensamos que é algo distante, mas nas feiras de ciências muita gente
me conta histórias de membros da família que têm sonambulismo."
O sonambulismo é considerado um distúrbio benigno do sono, que atinge
principalmente crianças e, apesar de não ter cura, pode desaparecer
espontaneamente.
De um modo geral, a pessoa que sofre do transtorno pode sentar, andar,
falar ou fazer atividades repetitivas, até de olhos abertos, enquanto
está no estágio mais profundo do sono.
Apesar de não causar danos específicos à saúde, os episódios de
sonambulismo estão associados a acidentes domésticos - algumas pessoas
tropeçam, abrem janelas ou tentam cortar alimentos nesse estado, por
exemplo.
"O sonambulismo faz parte do amadurecimento dos sistemas de sono no
cérebro, por isso ocorre muito em crianças. Mas sabemos que existe uma
predisposição genética. É comum famílias terem mais de uma pessoa com o
distúrbio", disse à BBC Brasil a neurologista Rosana Cardoso Alves, da
Academia Brasileira de Neurologia.
'Acordado!'
Durante a pesquisa, em artigos e centros especializados como o
Instituto do Sono e na Universidade de São Paulo (USP), Nathália
descobriu que a frequência cardíaca de um sonâmbulo durante o episódio é
semelhante à de uma pessoa que está acordada fazendo atividades.
"Achei que deveria criar um medidor cardíaco porque, lendo os artigos,
(vemos que) o sono e o sonambulismo estão associados aos batimentos
cardíacos. Quando a gente está dormindo, a frequência cardíaca é de 40 a
70 batimentos por minuto. E, quando acordamos, ela vai de 70 até 110",
explica.
"Pensei: quando o sonâmbulo levanta e inicia o estado de distúrbio, a
frequência dele altera e eu posso identificar o momento. A parte mais
difícil foi ver se a minha ideia era válida ou não."
O monitor criado por Nathália usa um pequeno sensor de batimentos
cardíacos ligado a uma placa de Arduíno (placa eletrônica usada para
programar comandos) e a uma placa de bluetooth, que envia sinais para um
aplicativo no computador ou smartphone.
"O sonâmbulo deve usar o sensor como uma pulseira ou relógio. Ele capta
seus batimentos cardíacos, que aparecem no computador ou no smartphone
como um eletrocardiograma", explica a estudante.
"Quando a pessoa entra em estado de distúrbio e levanta, nós podemos
enviar uma mensagem para alguém da família dizendo 'Acordado! Acordado!
Acordado!'. Também pensamos em acionar uma vibração mecânica na
pulseira, como se a pessoa estivesse sendo acordada por alguém. No
Instituto do Sono me disseram que isso seria válido."
A neurologista Rosana Alves diz, no entanto, que acordar um sonâmbulo de maneira brusca não é aconselhável.
"A pessoa pode se assustar e ter uma reação mais violenta. Mas
instrumentos como o que ela está desenvolvendo são muito importantes
para alertar a família de crianças. Já existem até alguns que medem a
atividade motora durante o sono. Acho muito válido."
"Um dispositivo desses também poderia ajudar pessoas com Transtorno
Comportamental do Sono REM, que se parece com sonambulismo, mas é mais
comum em idosos. O paciente tem sonhos vívidos e, por exemplo, se sonha
que está correndo, sai correndo de verdade. Diferentemente do
sonambulismo, ele acorda, mas pode se machucar", afirma.
De acordo com Alves, não é comum tratar sonambulismo com medicamentos,
mas, sim, com medidas de proteção, como trancar locais da casa que
possam oferecer risco e colocar pequenas cercas móveis no topo de
escadas.
Testes
"Uma coisa que me agrada muito é ver o crescimento dos alunos e
aprender junto com eles realizando esses projetos. É um trabalho em que
eu não tenho a resposta certa, eles é que vão encontrar", disse à BBC
Brasil o professor de física da escola Alexandre Von Humboldt, Rafael
Assenso, que orienta a iniciação científica.
Segundo Assenso, o interesse dos alunos pelos projetos tem aumentado na
medida em que a escola ganha mais destaque em feiras e eventos de
ciências, engenharia e tecnologia do Estado e em âmbito nacional.
O monitor de Nathália, que foi desenvolvido durante um ano, desde a
pesquisa até o protótipo, ainda não foi testado em pacientes com
sonambulismo, apenas nos próprios criadores.
"Estamos buscando parcerias com centros de pesquisa para testarmos com
sonâmbulos. Uma empresa estrangeira no Brasil se interessou por uma
parceria com a escola, porque temos um grupo de projetos na área de
medicina", afirma o professor.
O protótipo inicial do monitor criado por Nathália custou cerca de R$
150. Agora, ela está desenvolvendo as próprias peças. O objetivo é que a
produção custe cerca de R$ 50.
"Agora estamos desenvolvendo nosso próprio circuito numa placa de
cobre. Ele vai ficar bem pequenininho, do tamanho de uma tela de
relógio. Também estamos fazendo nosso próprio aplicativo. Para o
protótipo, tivemos que achar um que pudéssemos usar", diz a estudante.
A experiência fez com que Nathália passasse a flertar também com a
engenharia eletrônica. Por causa do monitor, ela chegou a ganhar um
prêmio para mulheres na engenharia durante a Feira Brasileira de
Ciências e Engenharia (Febrace), da Escola Politécnica da USP, um dos
maiores eventos brasileiros do gênero.
"Eu continuo querendo ser médica, mas quero levar a tecnologia para
dentro dos hospitais. Sempre quis saber como as coisas funcionavam."
"Mas quando você fala sobre engenharia, todo mundo diz que as
faculdades só têm homem. Dá vontade de ser melhor e mostrar que mulheres
podem ser muito boas na engenharia."
Inspiração
Filha de uma professora de educação infantil e de um motorista
autônomo, Nathália diz que uma de suas inspirações foi outra estudante
empreendedora: a baiana Georgia Gabriela Sampaio, que, aos 19 anos, teve seu projeto para diagnóstico de endometriose selecionado por um concurso na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos.
Após o reconhecimento, Georgia foi aceita em nove universidades
americanas e, atualmente, estuda Engenharia Química na Universidade de
Stanford, na Califórnia.
"Quando eu comecei o meu projeto, meus pais me disseram que eu poderia
ajudar na medicina assim como a Georgia, que fez o teste da
endometriose. Queria dizer obrigada a ela!", diz Nathália à reportagem.
Falando à BBC Brasil, Georgia disse se sentir "honrada de ser vista
como referência para alguém como ela, que teve a iniciativa de um
projeto como esse".
"Eu espero que ela vá muito mais longe do que eu fui no meu período de
ensino médio, e que ela contribua ainda mais para a medicina", disse.
Dentro da faculdade, Georgia colabora com uma empresa americana para um
produto semelhante ao seu projeto original: um método menos invasivo
para diagnosticar a endometriose em mulheres.
"Para Nathália eu também diria que é muito importante ter mentores que
estejam disponíveis para ajudá-la no processo. Foi o que eu mais senti
falta no ensino médio e é o que faz mais diferença na minha experiência
com pesquisa."
Em sua escola, a estudante paulistana também já se tornou referência para outros interessados na ciência.
"Quando entrei na escola, tinha uma menina que fez um trabalho de
astronomia muito legal. E eu achava que ela poderia distribuir ideias
para todo mundo. Agora as pessoas acham isso de mim", diz, rindo.
"Eu tento ajudar, digo que a pessoa deve tentar fazer um trabalho na
área que ela quer trabalhar, porque ajuda a gostar. Para mim, ciência
nunca foi chato. Quando você se aproxima de algo de que gosta é bem
melhor."
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