A ex-presidiária que se curou do vício em crack e hoje ajuda outras mulheres a reconstruírem suas vidas
Americana Susan Burton passou décadas presa ao ciclo de pobreza, abusos, drogas e prisão até conseguir se reerguer; hoje, espera as mulheres que descem do ônibus vindo da prisão, oferecendo-lhes um lugar para morar.
Toda vez que era libertada da prisão, a americana Susan Burton repetia a
mesma promessa: "Vou começar uma vida melhor. Não vou voltar". Pouco
tempo depois, porém, estava de volta atrás das grades por posse de
drogas.
Ao todo, foram seis passagens pela prisão por posse de cocaína e crack
ao longo de quase duas décadas, nas quais nunca recebeu tratamento para o
vício nem qualquer tipo de ajuda para se reintegrar à sociedade.
Na época, início dos anos 1980, os Estados Unidos viviam o auge da
chamada guerra às drogas, com foco em punição em vez de tratamento para
viciados.
"Nunca me ofereceram, e eu não sabia pedir ajuda, porque nem sabia o
que pedir. Pessoas da minha cor, que cresceram onde cresci, nunca haviam
ouvido falar em reabilitação. Eu era sempre mandada de volta para a
prisão", conta Burton em uma autobiografia lançada neste mês nos Estados
Unidos.
Em 1997, aos 46 anos de idade, ela finalmente conseguiu tratamento por conta própria e se recuperou do vício.
Desde então, dedica-se a ajudar outras ex-presidiárias a recomeçarem a
vida e interromperem o ciclo de pobreza, abusos, drogas e prisão.
Abuso sexual e morte do filho
Burton conhece bem esse ciclo. Nascida negra e pobre em uma comunidade
violenta de Los Angeles, ela tinha quatro anos de idade quando começou a
ser abusada sexualmente pelo namorado de uma tia.
Foi o início de anos de violência nas mãos de diferentes agressores.
"Naquela comunidade, sofri todo tipo de abuso físico, sexual e
emocional", relata Burton à BBC Brasil.
Ela conta que somente décadas depois, quando já estava presa, conseguiu
finalmente falar sobre o trauma e começar a entender o impacto
duradouro que teve em sua vida.
Mas o acontecimento que jogou Burton definitivamente na espiral de
decadência que a levou à prisão foi a morte do filho, Marque Hamilton, a
quem ela chamava de K. K., aos cinco anos de idade.
Em uma tarde de 1981, Burton estava em casa quando ouviu o som de pneus
derrapando. Ao correr para a rua, deparou com K. K. já caído.
O motorista, um policial que dirigia um carro sem identificação, não
viu o garoto nem parou para socorrê-lo, tampouco foi punido pelo
acidente.
"Nunca recebi nem mesmo um pedido de desculpas, nem do policial, nem do departamento", conta Burton.
"Eu desmoronei. Comecei a beber para sufocar a dor, a perda, e todos os
problemas da minha vida. Logo passei a usar drogas, e essas drogas me
levaram à prisão", revela.
Sua outra filha, Toni, tinha 15 anos quando o irmão foi morto.
Dificuldades e recaídas
Sempre que era libertada, ainda sem tratamento para o vício ou apoio
para recomeçar, Burton, assim como mais da metade das ex-presidiárias na
Califórnia, segundo dados do Departamento de Correções, acabava
sofrendo recaídas e voltando para a prisão.
Segundo Burton, ao sair da prisão, as mulheres recebem US$ 200, com os
quais devem comprar uma muda de roupas, uma passagem em um ônibus que
vai deixá-las em Skid Row - área no centro de Los Angeles notória pela
concentração de moradores de rua e viciados - e, com o que sobrar,
recomeçar a vida.
"Eles destruíram sua carteira de identidade (no momento da prisão),
então você não tem nenhum documento. Também não tem onde morar",
ressalta.
Ao descer do ônibus, essas mulheres se tornam alvo fácil de cafetões e traficantes que circulam pela área.
"A única comunidade que a recebe de volta é aquela da qual você saiu quando foi para a prisão", observa.
Mesmo as que conseguem se manter sóbrias, sofrem com preconceito e barreiras legais para sua reintegração.
Sem documentos e com ficha criminal, é muito difícil conseguir emprego.
Sem emprego, não há como conseguir alugar um lugar para morar. Sem
moradia, têm a custódia dos filhos negada.
Recomeço
Burton cita dados segundo os quais 85% das mulheres presas nos Estados
Unidos foram, em algum momento, abusadas fisicamente ou sexualmente, e
que, desproporcionalmente, são negras e pobres. Ela faz parte dessa
estatística.
"Desde cedo sofri diferentes tipos de abuso. Se tivesse tido acesso a
algum tipo de terapia, alguma ajuda para lidar com o trauma e com a dor
da perda do meu filho, talvez não tivesse recorrido ao álcool e às
drogas", diz.
O ciclo de vício e encarceramento só foi quebrado quando, ao sair da
prisão pela última vez, recebeu ajuda de uma amiga para se internar em
uma clínica de reabilitação para viciados.
"Fiquei internada durante cem dias, recebi todo tipo de tratamento e me curei", relembra.
Quando deixou a clínica, Burton decidiu que queria oferecer a outras
ex-presidiárias o tipo de abrigo e apoio que gostaria de ter recebido.
Conseguiu emprego como cuidadora de uma idosa, economizou US$ 13 mil e, em 1998, comprou uma pequena casa.
Ela mobiliou os cômodos com beliches e passou a esperar as mulheres que
desciam do ônibus vindo da prisão, oferecendo-lhes um lugar para morar.
Reconhecimento
Hoje, aos 65 anos, Burton tem cinco casas em Los Angeles operadas pela
organização que criou, A New Way of Life ("Um Novo Modo de Vida", em
tradução livre), pelas quais já passaram mais de mil mulheres e
crianças.
Ela recebe dezenas de cartas diariamente de presidiárias buscando uma das cerca de 70 vagas abertas por ano.
Além de moradia, as ex-presidiárias recebem assistência legal, ajuda
para conseguir documentos, empregos, retomar os estudos e reconquistar a
guarda dos filhos. Também são encaminhadas a tratamento mental e para
abuso de drogas.
"Não limitamos o tempo que podem permanecer conosco. Você não sabe
quanto tempo vai levar para uma pessoa se reintegrar. Não queremos
tratar alguém por três ou seis meses e depois colocá-la na rua se ainda
não estiver pronta", observa.
Os esforços de Burton ganharam reconhecimento nacional nos Estados
Unidos, onde ela já recebeu diversos prêmios por seu trabalho.
Agora, ela conta sua trajetória no livro "Becoming Ms. Burton: From
Prison to Recovery to Leading the Fight for Incarcerated Women"
("Tornando-se Senhora Burton: Da Prisão à Recuperação à Liderança na
Luta pelas Mulheres Presas", em tradução livre), escrito com a
jornalista Cari Lynn.
Burton ressalta que sua organização gasta US$ 16 mil por ano para
manter cada mulher, menos de um terço do custo de US$ 60 mil por ano
para manter uma mulher na prisão na Califórnia.
Ela defende que investir em tratamento em vez de punição pode reduzir a
reincidência e dar uma chance para que essas pessoas contribuam com a
sociedade.
Burton opina, porém, que os dependentes devem ter a opção de receber
tratamento, mas não serem internados à força. "Ninguém deve ser forçado a
nenhum tipo de hospitalização. O poder de escolha é um fator crucial
para que a pessoa participe ativamente de seu processo de recuperação."
"Estamos vendo que colocar essas pessoas na prisão não funciona, não torna uma comunidade mais segura", afirma.
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