sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Suicídios de crianças se tornam drama de cidade síria sitiada

Fome devasta Madaya e região; antes do cerco nenhum caso deste tipo havia sido registrado
 
Pelo menos seis adolescentes se suicidaram na cidade Facebook/Save the Children/Matts Lignell 
 
Não são apenas os bombardeios, os mísseis e os tiroteios que têm devastado a vida de crianças na Síria. A indiferença e a tortura psicológica também são silenciosamente fatais. Penetram de maneira invisível em meio à poeira e aos destroços. E sufocam, tirando da atmosfera, mais do que o oxigênio, a esperança destas vidas que mal começaram e que, em pouco tempo, entram em um conflito sobre a validade da própria vida.

A pergunta que fica, com o crescente número de suicídios infantis verificados principalmente na cidade de Madaya, é repetitiva e só irá se esgotar até que uma resposta efetiva e clara elucide o dilema: qual o sentido desta e de qualquer guerra? Os números fornecidos pela ONG Save the Children, revelam que em Madaya, cidade ao norte de Damasco, sitiada há meses, os fogos foram em parte substituídos pelo terror do nada. Nada entra, nada sai. Como na passagem da Divina Comédia, de Dante Alighieri: "Deixai toda a esperança, vós que entrais". E vidas vão definhando diante da fome e da descrença no dia seguinte.

A equipe médica na cidade, segundo a ONG, relatou que pelo menos seis adolescentes, o mais jovem sendo uma menina de 12 anos, se suicidaram nos últimos dois meses. Sete adultos jovens também buscaram acabar com a própria vida neste período. E antes de o cerco ser imposto, em julho de 2015, nenhum caso deste tipo havia sido registrado na região. Segundo a oposição ao ditador Bashar al-Assad, a cidade, de cerca de 40 mil habitantes, está sitiada por forças do governo.

O psiquiatra Mário Louzã, especialista em Psiquiatria Geral pela Associação Brasileira de Psiquiatria, considera que este tipo de confinamento à luz do dia e pelos contornos sem limites das trevas é um drama que corroi até mesmo os mais lúdicos sonhos infantis.

— Não é pelo fato de ser criança que alguém não pode passar por situações de depressão e suicídio. É raro mas pode acontecer. Em Madaya, por exemplo, há uma situação extrema, de cerco, com a população civil completamente desprotegida. As crianças também ficam completamente angustiadas, veem o dia-a-dia desesperadas e as poucas forças que ainda têm acabam sendo canalizadas para aliviar o sofrimento.

Embora sendo meio paradoxal, nessas circunstâncias o suicídio acaba sendo como um alívio, pode soar forte mas é isso que em geral acontece.

A desnutrição é outro ponto que Louzã ressalta como um fator a mais para que casos de depressão e falta de ânimo, até em atividades escolares e tentativas de lazer, prevaleçam. Muitos dos que não chegam ao suicídio, acabam morrendo um pouco, mesmo acordados. Segundo médicos locais, o índice de depressão intensa, problemas psicológicos e paranóias, entre outros, se acentuou. Em vez de explosões diretas, implosões internas, que fazem destroços de qualquer tipo de bem-estar e autoestima.

— Essas crianças estão subnutridas, um corpo sem nutrição é um corpo que está na corda bamba em termos de sobrevivência. Nesse momento, aprender algo em sala de aula é irrelevante, a apatia que acontece com a desnutrição é uma forma de o organismo tentar se proteger, quanto menos coisa a pessoa fizer mais salva as reservas de calorias no corpo.

E o futuro? O especialista acredita que as crianças sobreviventes conseguirão lidar com esses traumas se tiverem algum tipo de tratamento direcionado ao lado emocional. Mas serão cicatrizes que, em algum momento longínquo, certamente latejarão.

— É uma situação parecida com a de um campo de concentração. Vamos supor que a cidade seja libertada. As pessoas serão socorridas, tratadas, alimentadas, mas, principalmente para as crianças e jovens a marca do sofrimento ficará e em algum momento terá de ser tratada.

Recuperação e traumas
Louzã diz que a recuperação tem relação com a maneira com que cada pessoa irá encarar esse trauma comum a todos naquela situação.

— Depende da personalidade de cada um. Quem tiver uma personalidade mais estruturada para a situação terá menos prejuízos. Às vezes o fardo que a pessoa carrega é a própria sobrevivência, porque provavelmente viu amigos, parentes e pessoas ao lado morrerem e o fato de terem sobrevivido pode gerar uma espécie de culpa. Isso terá de ser abordado também.

Os maiores holofotes atualmente, estão voltados para as brutalidades em Aleppo. Enquanto isso, outras situações também dramáticas proliferam pelo país, assolado por uma guerra civil desde 2011, em que forças antagônicas se digladiam e fazem deste tipo de cerco uma pressão para ganhar território, obrigando uma população torturada a deixar a cidade. A tática da guerra é fria, na qual somente a vitória interessa. Mas que vitória? Em certo sentido, aquela que derrota as crianças do inimigo.

Rula, uma professora local, teve de se separar de seus filhos de 12 e 15 anos, para que eles pudessem se salvar em outro país. Mantendo as atividades, ela disse ao site da ONG que se preocupa com as crianças que ficaram. Madaya ficou famosa há alguns meses, quando foi noticiado que 65 pessoas morreram de fome por causa do cerco. A ajuda chegou, mas, desde abril, novamente está impedida de entrar na cidade, para desespero da professora. E antes de qualquer tratamento, a situação é de emergência.

— A maioria das crianças sofrem de subnutrição e têm dificuldade para digerir os alimentos. Elas têm infecções em seus sistemas digestivos e doenças como a meningite. Agora, a fome e o cerco estão voltando a ser como foi no último inverno, quando as crianças e até mesmo adultos morreram de fome. Nós não precisamos de simpatia, precisamos de ajuda nesta crise.

De acordo com as informações da ONG, há várias formas de se cometer atrocidades em uma guerra. Pode ser tanto por meio de armas, quanto na ausência direta delas. Neste caso, as crianças estão sendo "suicidadas". Esta é a verdade. Mas, como diria o filósofo Ésquilo, há mais de 1.400 anos, "na guerra, a verdade é a primeira vítima". E a segunda é a criança.

Fonte: http://noticias.r7.com/internacional/suicidios-de-criancas-se-tornam-drama-de-cidade-siria-sitiada-09092016

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