Terapia genética para o câncer deve chegar ao Brasil em 2018
Salto estratégico na oncologia, terapia capaz de ensinar células do sistema imune a lutar contra o tumor deve chegar ao país no ano que vem. Hospital em São Paulo já prepara infraestrutura.
Por Carolina Dantas e Monique Oliveira, G1
A estratégia de editar geneticamente nossas células de defesa para que
elas "aprendam" a combater o câncer parece não estar tão longe do
alcance dos brasileiros. Aprovada comercialmente nos Estados Unidos no final de agosto,
a terapia que promete ser um salto importante na oncologia está na mira
de vários centros de saúde no país e um deles reuniu condições para
trazer a terapia no ano que vem -- depois de levar pacientes brasileiros
para instituições de excelência fora do país.
Foi o que aconteceu com Márcia D'Umbra, de 50 anos, que venceu um
melanoma agressivo após se submeter a esse tipo de tratamento em Israel
Enquanto o Inca (Instituto Nacional do Câncer), público, que tem
estudos em cobaias com a terapia desde os anos 1990, busca financiamento
para levar a terapia adiante, o Hospital Israelita Albert Einstein, em
São Paulo, privado, anuncia que deve fazer os primeiros tratamentos
experimentais no Brasil em 2018. O hospital separou uma sala especial
para isso e já tem pesquisadores em treinamento nos Estados Unidos. A
ideia é ser o primeiro centro de terapia genética do câncer na América
Latina.
O investimento do Einstein para começar a terapia por aqui está
avaliado em US$ 7 milhões (mais de R$ 22 milhões) -- com US$ 2 milhões
(cerca de R$ 6,3 milhões) destinados a uma sala especial de
esterilização. "É uma estimativa genérica porque, mais importante que a
infraestrutura, vão ser os investimentos em pesquisa", diz Wilson
Pedreira, diretor do Centro de Oncologia do Einstein.
Fora do país, o custo dos tratamentos para os pacientes gira em torno
de US$ 300 mil (cerca de R$ 945 mil), como mostra detalhamento abaixo.
O G1 entrou
em contato com o Hospital Sírio-Libanês e com o A.C Camargo, outros
centros de referência no tratamento do câncer no Brasil, e nenhum dos
dois apresentou projetos a curto prazo para implementar essas novas
terapias. "As barreiras são financeiras e tecnológicas", disse Yana
Novis, coordenadora de onco-hematologia do Centro de Oncologia do
Hospital Sírio-Libanês.
A primeira das novas terapias para o câncer que deve chegar ao Einstein
é a TIL, indicada para o melanoma. Mais para frente, serão
disponibilizados protocolos de CART-Cell, imunoterapia que tem
apresentado bons resultados em leucemias. Essas terapias, no entanto,
ainda deverão ser regulamentadas por órgãos reguladores e comitês de
pesquisa.
De qualquer modo, segundo especialistas ouvidos pela reportagem, não se
trata de anunciar uma terapia longínqua, fruto de um otimismo um tanto
precipitado: de fato, a imunoterapia genética, façanha que desde os anos
1980 tem sido apontada como o "sonho" da medicina no câncer, pode ser a
diferença entre a remissão e a cura no tratamento de tumores no país.
Trata-se de um salto estratégico, muito mais que apenas mais uma
novidade em tratamentos. A medicina com a imunoterapia genética tem a
possibilidade de fazer com que o corpo "aprenda" a combater o tumor caso
ele volte -- técnica que é bem diferente de eliminar células
cancerígenas por meio de cirurgia ou quimioterapia.
"Essa é uma terapia que ficou quente nos últimos anos porque os resultados em leucemia foram muito promissores", diz Martin Hernan Bonamino, pesquisador do Inca e coordenador do grupo de câncer da Fiocruz.
"É o mesmo conceito hoje da Aids, o câncer pode deixar de ser letal e ser controlável. As terapias estão caminhando nesse sentido", diz Wilson Pedreira, diretor do Centro de Oncologia do Hospital Israelita Albert Einstein.
"São as células-soldado do sistema imune que entram em ação contra o tumor”, diz Antonio Carlos Buzaid, oncologista do Einstein e do Hospital Beneficência Portuguesa.
Não à toa, o número de estudos clínicos que investigam a nova
estratégia é alto e, se considerarmos os números de estudos ainda em
andamento, a probabilidade de novas descobertas serem feitas nos
próximos anos é ainda maior.
Em consulta feita no dia 20 de setembro no clinicaltrials.gov,
plataforma que cadastra estudos clínicos em todo mundo, havia o registro
de 382 estudos com CART-Cell, com 195 deles recrutando pacientes e 75
deles completos.
No Brasil, também há estudos preliminares em andamento. Até o fim de
2017, a USP de Ribeirão Preto deve submeter proposta de estudo clínico
experimental para o Comitê Nacional de Ética em Pesquisa. Sob a
supervisão do professor Rodrigo Calado, a universidade informa que o
Hemocentro de Ribeirão Preto tem um aporte financeiro de R$ 7 milhões
para pesquisas genéticas no câncer.
Os estudos também devem mapear as novas dificuldades dessa terapia.
Como qualquer nova terapia, contudo, os desafios também são novos --
muitos deles desconhecidos da oncologia até agora.
As principais estratégias
Disponível apenas para alguns tipos de câncer, são três as principais
estratégias de terapias celulares: CART-Cell, para leucemia; T CELL
"Engendrado", para melanoma e sarcoma; e TIL, usada também para o
melanoma. Confira como funciona cada uma delas:
1 - CART-Cell
A estratégia da CART-Cell consiste em habilitar linfócitos T, células
de defesa do corpo, com receptores capazes de reconhecer o tumor. O
ataque é contínuo e específico e, na maioria das vezes, basta uma única
dose.
Indicações até agora:
Linfomas e leucemia linfoide aguda (o câncer mais comum em crianças).
Nas leucemias em crianças, a taxa de sucesso dessa terapia é alta
(superior a 50%, em média).
Onde o processo está mais avançado: Estados Unidos.
Preço: Os
processos são experimentais. Nos Estados Unidos, no entanto, é possível
pagar para entrar no protocolo. Por lá, a terapia sai por US$ 300 mil
(cerca de R$ 945 mil), em média.
2 - T CELL 'Engendrado'
O processo é parecido com o do CART-Cell. A diferença aqui é que,
enquanto a célula de defesa reconhece antígenos (partícula que deflagra a
produção de um anticorpo específico) na superfície do tumor, o T CELL
engendrado é capaz de reconhecer antígenos mais profundos, que são
processados e apresentados na superfície da célula cancerosa.
Onde está sendo estudado: National Institute of Health (Estados Unidos).
Indicações com mais sucesso até agora: Melanoma (câncer grave de pele) e Sarcoma sinovial (tumor das partes moles).
Estimativa de custo: Não há ainda. Os resultados são bem preliminares, mas há pacientes aparentemente curados com essa técnica.
3 - Terapia 'TIL'
O processo consiste em retirar o tumor do paciente e extrair as células
de defesa (linfócitos T que infiltram o tumor), cultivá-las em
laboratório, expandir em grande quantidade e depois reinjetá-las no
paciente.
Ao contrário do CART-Cell, não há terapia genética, e o processo tende a
ser mais seguro (embora ainda seja bem mais complicado que as terapias
convencionais).
Onde está sendo estudado:
Israel, Holanda e Estados Unidos; no Brasil, o Hospital Israelita
Albert Einstein planeja iniciar os tratamentos dos primeiros pacientes
em 2018.
Indicação: Melanoma, com taxa de cura em torno de 30% dos casos.
Preço estimado: US$ 200 mil em Israel (cerca de R$ 630 mil).
Um caso de cura
Ava Christianson já tinha passado por várias rodadas de quimioterapia e
estava pronta para mais uma.
Acabou se tornando um dos casos mais
repercutidos de cura pela nova terapia chamada de CART-Cell.
O procedimento, de acordo com reportagem do "The Washington Post",
demorou cinco minutos no Centro Clínico dos Institutos Nacionais de
Saúde dos Estados Unidos (NIH) -- na época, a garota tinha 8 anos e
convivia com a doença desde os 4 anos. A remissão da doença começou um
mês depois.
O rápido procedimento passado por Christianson é a injeção de suas
próprias células T, parte fundamental do nosso sistema imunológico. Elas
foram modificadas para rastrear e matar as células tumorais.
Christianson era a paciente teste de nº de 18 do NIH, que ainda é o
centro-chefe das pesquisas sobre o novo tratamento. Os resultados
positivos direcionaram à aprovação pela FDA, órgão dos EUA similar à
Anvisa. A Novartis, empresa que possui a patente, informa que a taxa de
remissão, nesses casos, é de 83%, em média.
Brasileiros buscam solução fora
Já existem pacientes brasileiros que viajaram para o exterior atrás de
uma cura com a terapia. Márcia D'Umbra, de 50 anos, sobreviveu a um
melanoma agressivo após se submeter ao tratamento do TIL, em Israel, há 5
anos. "Quando vou ao consultório, o médico brinca: estou quase achando
que você está curada", conta. "Era a única chance que ela tinha", diz
Antonio Buzaid, do Einstein, que ajudou Márcia a conseguir o tratamento
em Israel.
"Depois de Israel, não tinha mais o que fazer no meu caso. Era uma situação de total risco", diz Márcia.
Antes da viagem a Israel, Márcia tentou todos os protocolos clínicos
para o tratamento do melanoma no Brasil. Passou por quimioterapia e por
medicamentos de ponta disponíveis para a condição, como o ipilunumab.
A família também chegou a procurar um tratamento nos Estados Unidos,
mas Márcia não correspondia a todos os critérios para entrar no
protocolo.
Com o melanoma em metástase, Márcia chegou a ter dois tumores no
sistema nervoso central. Cinco anos após a terapia em Israel, ela conta
como é a vida normal que passou a levar, livre dos tumores que tinham se
espalhado por seu corpo.
"Quando eu fiquei doente, eu tinha metástase cerebral. Eu não podia mais dirigir, eu perdi todo o domínio da minha vida, de tudo. Hoje eu tenho uma vida normal", relembra.
As dificuldades do tratamento
Apesar de já estar disponível para algumas condições e se revelar
promissor, na prática, o processo do tratamento da terapia genética é
bastante complexo e desafiador. Por esse motivo, poderá levar algum
tempo até que o procedimento esteja disponível para mais tipos de
câncer.
Veja abaixo algumas das barreiras ainda a serem vencidas:
Efeitos colaterais: estudo publicado na "Nature Review Clinical Oncology” alerta
para efeitos colaterais letais da terapia -- como a toxicidade
neurológica e o inchaço no cérebro. Outra questão é a chamada "síndrome
de liberação de citoquinas (SIR)", resposta imune progressiva que causa
sintomas semelhantes à gripe, mas com potencial fatal nos pacientes.
Especificidade: para
garantir o sucesso da terapia, os cientistas modificam o linfócito T
para que ele seja capaz de reconhecer uma estrutura específica do tumor.
Isso é, ao mesmo tempo, o motivo do sucesso e do eventual fracasso da
terapia, pois, caso essa estrutura utilizada para "ativar" o linfócito
não seja de fato específica e, por algum motivo, o paciente tenha a
presença desses antígenos em alguma outra parte do corpo, a terapia
perderá a sua especificidade. Resultado: a célula de defesa também
poderá atacar células do corpo saudáveis, uma vez que o linfócito está
treinado para reconhecer especificamente essa estrutura e não o tumor
por inteiro.
"Esse é um processo muito complexo e é por esse motivo que a terapia não está disponível para mais condições", diz Antonio Carlos Buzaid, oncologista. "Não é para todo mundo porque ela será desenhada para tumores específicos."
"Um estudo clínico que testou a terapia para o controle de câncer de
mama com antígeno HER 2 acabou não funcionando por esse motivo. Uma
paciente que tinha um pouquinho desses receptores no pulmão morreu com o
órgão totalmente destruído em horas".
Precocidade:
de acordo com Yana Novis, do Hospital Sírio-Libanês, ainda não há tempo
suficiente em testes para avaliar os efeitos do tratamento a longo
prazo no corpo humano.
"Muito importante quando se mexe com engenharia genética é tentar entender o que esse tipo de terapia pode, quem sabe, trazer de impacto no futuro", disse.
"Os estudos são todos precoces, e os pacientes precisam ser
acompanhados em um período de tempo mais longo. Precisamos ver se, além
de trazer a cura, podemos trazer algum outro impacto na vida do
paciente", explicou.
"Isso porque, quando você está ativando todo um sistema imune pra
combater um câncer, você não tem tanto controle sobre ele. É uma
preocupação que todos têm com a terapia CART-Cell. Pode ser que não
aconteça nada, mas pode ser que esse sistema imunológico desregulado por
nós para curar uma doença possa causar outra no futuro”, aponta.
Logística: Atualmente,
as terapias celulares estão sendo voltadas especificamente para cada
paciente. "Isso é um desafio logístico importante, já que as células têm
que ser transportadas, modificadas e devolvidas. O reparo leva de 20 a
30 dias", relata o oncologista do Inca.
Novo x convencional
Na forma convencional, o tratamento dos cânceres sanguíneos é feito com
quimioterapia. No caso de câncer com órgãos sólidos, pode-se fazer uma
cirurgia para retirar o tumor e também usar a radioterapia, diz o
oncologista Márcio Paes.
"Realmente é um tratamento ainda muito tóxico. Cai o cabelo, causa fraqueza, náuseas. A radioterapia pode dar uma sensação de queimadura e fadiga", explica, sobre os métodos convencionais.
Por outro lado, o médico diz que o mecanismo das novas terapias pode
causar um efeito inflamatório porque o corpo "luta" contra si mesmo.
"Para os tratamentos novos, há uma expectativa muito boa de que possam
causar poucos efeitos colaterais. Mas há riscos. Pode haver reações
graves que podem levar o paciente à UTI. O efeito é uma reação
inflamatória grave, mas sem queda de cabelo, por exemplo."
"É um tratamento menos tóxico e com uma taxa de resposta positiva maior", completa.
Regulamentação
A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) informa que não
houve um pedido formal para o uso da terapia genética no Brasil. Com
isso, as terapias celulares seriam aplicadas em caráter experimental –
nesse caso, sob a supervisão do Conep (Comitê Nacional de Ética em
Pesquisa), que deve aprovar o protocolo em que cada terapia será
utilizada.
Para deixarem de ser experimentais, os serviços deverão pedir aprovação
na Anvisa e também passar pela Comissão de Novos Procedimentos do
Conselho Federal de Medicina.
Além disso, mesmo quando aprovadas, as terapias celulares só serão
usadas em pacientes que não responderem aos tratamentos tradicionais, já
que se trata de um processo mais invasivo e extremamente complexo.
Preços e desafio para o SUS
O preço da terapia celular fora do país está avaliado em US$ 300 mil
(cerca de R$ 945 mil), em média -- um valor que tem por base o preço do
transplante de medula óssea.
Segundo Martin Bonamino, do Inca, apesar de aparentemente alto, o custo
da terapia não está tão fora do conjunto de terapias mais modernas para
o câncer. Medicamentos como o "Trastuzumabe", por exemplo, terapia
biológica usada para o tratamento do câncer de mama, tem um custo que
varia de R$ 20 mil a 30 mil mensais.
A terapia genética ainda teria uma vantagem quanto ao número de sessões
necessárias: o trastuzumabe geralmente é usado por 18 meses; já a maior
parte das terapias celulares em andamento tem potencial para serem
utilizadas uma única vez.
Bonamino indica que o maior desafio será a chegada dessas terapias no
sistema público. Para serem ofertados no SUS, diz ele, uma alternativa
seria a fabricação dessas terapias no Biomanguinhos (laboratório público
ligado à Fiocruz). "É fundamental que a gente tenha a capacidade de
também produzir esses tratamentos por aqui", diz.
Nenhum comentário :
Postar um comentário