terça-feira, 24 de outubro de 2017

'Dormi menino e acordei menina': o dramático relato do britânico intersexual criado sob gênero errado

Equívocos médicos levaram Joe Holliday a ser tratado como Joella durante anos. 'Me sentia em um buraco negro e não entendia por que', conta ele.

Por BBC
 
Joe só se reassumiu homem aos 25 anos de idade (Foto: BBC) 
Joe só se reassumiu homem aos 25 anos de idade (Foto: BBC) 
 
Quando o britânico Joe Holliday nasceu, em 1988, os médicos não tinham clareza quanto a se ele era um menino ou uma menina. Ainda no útero, seus órgãos genitais não se desenvolveram plenamente e ele tinha um grande buraco em seu abdome. 

Holliday, hoje com 29 anos, foi inicialmente descrito como menino em sua certidão de nascimento. 

Mas ele conta que um especialista do Great Ormond Street Hospital -- centro de referência de saúde infantil em Londres -- sugeriu a sua mãe que passasse a criá-lo como uma menina, alegando que cirurgicamente seria mais fácil e por causa da ausência de genitais masculinos. 

Por isso, em seu primeiro aniversário, ele passou de Joe a Joella, do dia para a noite. Seguindo os conselhos médicos, sua mãe trocou suas roupas de azul para cor-de-rosa. 

Ele literalmente foi dormir certo dia sendo tratado como um menino e acordou sendo tratado como uma menina. 

Uma década depois, em 1998, ele foi retratado, aos 10 anos, em um documentário da BBC que acompanhava a batalha legal de sua família para mudar a certidão de nascimento de menino para menina. 

Foi o início de um período de grande sofrimento para Holliday. Como Joella, ele sofreu de depressão e ansiedade, se automutilou e chegou a tentar suicídio.
"Durante alguns anos, me sentia em um buraco negro e não sabia por que", conta Holliday à BBC.
Foi só aos 25 anos que, por acaso, ele encontrou um prontuário médico antigo que mostrava que seus cromossomos eram XY -- ou seja, geneticamente, ele era do sexo masculino. 

Ele também descobriu que seus testículos haviam sido removidos quando ele tinha um ano e meio de idade, apesar de estarem perfeitamente saudáveis.
"Sinto que perdi uma parte enorme da minha vida", conta Holliday. "Foram 15 anos que passei deprimido, quase recluso a certa altura."
Com essas descobertas, Holliday passou a se aceitar como homem e assumiu sua identidade masculina.

Diferenciação sexual

A intersexualidade é um distúrbio de diferenciação sexual (DDS) e ocorre quando características como genitais, órgãos reprodutivos ou padrões cromossômicos não se desenvolvem conforme o esperado e não se enquadram nas divisões binárias de masculino e feminino -- assim, pacientes podem ter características sexuais mescladas. 
Quando criança, Joe era tratado como Joella (Foto: Arquivo Pessoal) 
Quando criança, Joe era tratado como Joella (Foto: Arquivo Pessoal) 
 
"Isso ocorre por causa de uma diferença entre os genes e a forma como (o corpo do paciente) responde aos hormônios sexuais", informa o NHS, serviço público de saúde britânico. "Pode ser genético, mas muitas vezes isso ocorre aleatoriamente, sem que haja uma causa óbvia." 

Dados da ONU apontam que, em âmbito global, até 1,7% da população tem traços intersexuais. 

O caso de Holliday vem à tona em uma nova investigação da BBC, que revelou que o Great Ormond Street Hospital ainda hoje não tem sido capaz de oferecer um tratamento de excelência para crianças intersexuais. 

Segundo as apurações, parte dos pacientes nascidos com distúrbios de desenvolvimento de órgãos genitais e suas famílias não tiveram acesso a atendimento psicológico e não tiveram seus casos devidamente estudados antes de passarem por cirurgias irreversíveis -- e que definiram o rumo de suas vidas. 

Em resposta, o hospital disse que os casos foram discutidos com equipes multidisciplinares e que um psicólogo especialista será contratado "nas próximas semanas". 

O protocolo para o acompanhamento de DDS inclui discussões com uma equipe de especialistas e acompanhamento psicológico, para garantir que as escolhas feitas em nome das crianças sejam as melhores possíveis. 

Exames -- que vão de ultrassom dos órgãos internos a exames de sangue para análise genética ou hormonal -- podem ajudar familiares e especialistas a escolherem o melhor caminho. 

Mas ainda se trata de uma área "muito complicada da medicina", afirma Ieuan Hughes, professor emérito de pediatria da Universidade de Cambridge e especialista em distúrbios hormonais. 

Ele afirma ser vital que as famílias com casos de DDS recebam apoio psicológico antes que qualquer cirurgia seja realizada nas crianças, já que as implicações da decisão costumam ser para a vida toda. 

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