A picada de mosca que deixa as vítimas em sono profundo
Alterações de personalidade, confusão mental grave e má coordenação também podem acontecer.
A mordida de uma mosca tsé-tsé é uma experiência extremamente
desagradável. Não é como a de um mosquito, que pode inserir sua fina
língua diretamente no sangue, muitas vezes sem o alvo perceber: a boca
dela tem minúsculas serrilhas que rompem a pele para poder sugar o
sangue.
Para piorar a situação, várias espécies de mosca podem transmitir
doenças. Uma das mais perigosas é causada por um parasita: a doença do
sono ou Tripanossomíase Humana Africana (THA), para dar o nome oficial.
Sem tratamento, ela é normalmente fatal.
Como tantas doenças tropicais, a doença do sono tem sido muitas vezes
negligenciada pelos pesquisadores farmacêuticos. No entanto,
investigadores têm se esforçado há tempos para compreender como ela
engana os mecanismos de defesa do nosso corpo.
Algumas de suas descobertas podem agora ajudar a eliminar a enfermidade completamente.
Há dois parasitas unicelulares que causam o sono mortal: Trypanosoma brucei rhodesiense e T. b. Gambiana.
Este último é mais predominante: é responsável por até 95% dos casos,
principalmente na África Ocidental.
Ele leva vários anos para matar uma
pessoa, enquanto o T. b. rhodesiense pode causar a morte em poucos
meses. Existem ainda outras formas que infectam o gado.
Após a mordida inicial, os sintomas da doença do sono muitas vezes
começam com febre, dores de cabeça e dores musculares. À medida que ela
avança, os infectados ficam cada vez mais cansados - é de onde a doença
recebe seu nome.
Alterações de personalidade, confusão mental grave e má coordenação também podem acontecer.
Embora a medicação ajude, alguns tratamentos são tóxicos e podem ser
letais, especialmente se ministrados depois que o mal alcançou o
cérebro.
Controle?
É interessante notar que a doença do sono não é tão mortal como antes.
No início do século 20, várias centenas de milhares de pessoas eram infectadas por ano.
Na década de 1960, a doença foi considerada "sob controle" e registrou
números muito baixos, tornando sua propagação mais difícil. Mas nos anos
70 houve outra grande epidemia, que demorou 20 anos para ser
controlada.
Desde então, programas melhores de rastreio e intervenções antecipadas têm reduzido o número de casos dramaticamente.
Em 2009, foram contados menos de 10 mil deles pela primeira vez desde
que os registros começaram, e em 2015 esse número caiu para menos de 3
mil, de acordo com dados da Organização Mundial de Saúde. A OMS espera
que a doença seja completamente eliminada até 2020.
Mas enquanto o declínio parece positivo, podem haver muitos mais casos
não registrados na zona rural da África. Para eliminar o problema
completamente, as infecções têm de ser acompanhadas de perto.
Uma série de novos estudos tem mostrado que o parasita é mais complicado do que se imaginava.
A doença do sono sempre foi considerada - e diagnosticada - como uma
doença de sangue, pois o T. brucei pode ser facilmente detectado no
sangue de suas vítimas. Num estudo publicado em setembro de 2016, porém,
pesquisadores revelaram ter descoberto que o parasita também pode
residir na pele e na gordura.
Pode até haver uma maior densidade de parasitas na pele do que no
sangue, diz a coautora do estudo, Annette MacLeod, da Universidade de
Glasgow, no Reino Unido.
O fato de a mosca tsé-tsé beber o sangue de uma pessoa pode fazê-la "pegar os parasitas da pele junto com o sangue".
Isso significa que uma pessoa pode não ter sintomas, mas ainda abrigar a doença e espalhá-la.
"Achamos que a pele é, portanto, um reservatório escondido da infecção", diz MacLeod.
Pessoas que transportam a infecção em sua pele não seriam tratadas como
aquelas com níveis detectáveis de parasitas no sangue. A descoberta
poderia explicar a misteriosa epidemia de 1970, e por que a doença pode
ressurgir em áreas que previamente tinham zerado os casos.
"Tivemos uma pessoa de Serra Leoa, que não registrou a doença por 29
anos e depois apareceu em estágio avançado da doença do sono", diz
MacLeod. "Você pode abrigar estes parasitas por um longo tempo e ficar
bem."
'Corrida armamentista'
Essa não é a única razão pela qual os parasitas podem iludir nosso sistema imunológico.
Em 2014, Etienne Pays, da Universidade de Bruxelas, na Bélgica,
descreveu a história da doença do sono como uma "corrida armamentista"
entre os humanos e o parasita.
Nessa batalha, nossa principal arma é uma proteína chamada
apolipoproteína L1, que é resistente a uma forma anterior de T. brucei.
Essa proteína foi "eficiente em matar o parasita no sangue", diz Pays. "Pelo que sabemos, ela só estava lá para matá-lo."
Infelizmente, ao longo do tempo o parasita encontrou uma maneira de
burlar a proteção da proteína.
Enquanto apolipoproteína L1 ainda pode
matar a variante que infecta o gado, não é mais eficaz contra as duas
estirpes do T. brucei que infectam os seres humanos. Essas duas
"conseguiram escapar", diz Pays.
Mas ele e sua equipe conseguiram ajustar a proteína em seu laboratório
para torná-la resistente ao T. b. rhodesiense, a forma rara, mas mais
letal.
O que eles não perceberam é que há pessoas na África que já têm um
sistema de defesa semelhante. Graças a uma mutação na mesma proteína,
elas têm imunidade natural contra o T. b. rhodesiense.
Pays agora suspeita que algumas pessoas sejam resistentes a todas as formas do parasita.
Essa imunidade natural infelizmente tem um custo. Ninguém ainda sabe
por que, mas ela tem sido associada a doenças renais em idade mais
avançada.
O desafio é fazer uma variante sem efeitos colaterais. A equipe de Pays
produziu outra proteína capaz de matar ambas as formas, mas, quando
eles a testaram em camundongos, os animais morreram.
O pesquisador ainda está aprimorando a proteína em seu laboratório, na esperança de que ela irá fornecer uma cura eficaz.
"Nós criamos outra, que estamos testando atualmente", disse.
As fases
Se Pays atingir seu objetivo, os médicos simplesmente precisarão
injetar a proteína em uma pessoa infectada. Em seguida, ela irá matar o
parasita e desaparecer. Isso é promissor, mas há um desafio adicional.
A razão pela qual a doença do sono é tão mortal é que ela pode entrar
no cérebro. Instalada lá, causa sintomas mais graves, como confusão,
alucinações e má coordenação. Uma vez no cérebro, ela se torna mais
difícil de tratar e, portanto, mais fatal.
Médicos pensam nisso como um segundo estágio da doença, sendo a primeira quando o parasita infecta o sangue.
Para atingir o cérebro, o parasita deve atravessar a barreira
sangue-cérebro, que bloqueia a maior parte das doenças e toxinas. A
questão-chave é como ele atravessa - ao que parece, estamos olhando para
o lado errado do problema.
Um estudo publicado em outubro de 2016 propõe que a doença do sono tem
três fases distintas, não duas como se pensava anteriormente.
A primeira é a picada da mosca tsé-tsé, após a qual o parasita infecta o
sangue da pessoa. Na segunda etapa, que não foi identificada
anteriormente, o parasita aparece no líquido cefalorraquidiano e em três
membranas que envolvem o cérebro, conhecidas como meninges.
Na terceira fase, as fronteiras de proteção do cérebro quebram e uma
"invasão em massa" de tripanossomas atravessa a barreira sangue-cérebro,
atacando-o.
Michael Duszenko, da Universidade de Tubingen, na Alemanha, e seus colegas descobriram o segundo estágio em camundongos.
Eles também encontraram uma razão para que a terceira fase leve meses e
às vezes anos para ocorrer: acontece que o parasita se mantém no
segundo estágio, ativamente atrasando o progresso da doença.
Para conseguir isso, ele libera um composto chamado prostaglandina D2, que faz duas coisas.
Em primeiro lugar, induz o sono no paciente, tornando-o mais vulnerável
à picada de uma mosca tsé-tsé. Em segundo lugar, faz com que algumas
das células de parasitas iniciem um processo chamado apoptose, ou "morte
celular".
Em outras palavras, o tripanossoma propositadamente destrói algumas das suas próprias células.
Matar suas próprias células pode soar como uma má ideia, mas fazê-lo
"reduz a carga do anfitrião e aumenta a chance de parasitas serem
transmitidos para a mosca tsé-tsé", diz Duszenko.
O conceito é manter o hospedeiro vivo, de modo que o parasita tenha
mais tempo para infectar outras pessoas. Se a concentração de parasitas
subir muito rapidamente, o anfitrião morreria antes de o parasita se
espalhar.
Essa descoberta pode ajudar a explicar por que algumas pessoas vivem
com níveis crônicos da doença por anos. Livros didáticos devem agora ser
reescritos em conformidade com essas pesquisas, diz Duszenko.
Adversário difícil
Apesar desses avanços, ainda há o problema de que o T. brucei é muito
bom em se manter um passo à frente da defesa dos seus anfitriões.
O parasita é particularmente hábil em "variação antigênica": tem mais
de 1 mil versões de uma proteína em sua superfície exterior, mas exibe
apenas uma versão de cada vez, de modo que o sistema imunológico do
hospedeiro só produz anticorpos contra a proteína que está à mostra.
Nesse meio tempo, alguns dos parasitas mudam para outra versão, que não podem ser atacadas por esses anticorpos.
Toda vez que o anfitrião produz anticorpos contra uma nova onda de parasitas, alguns tripanossomas mudam para uma nova camada.
"A resposta imune está sempre tentando recuperar o atraso com os
parasitas", diz Martin Taylor, da Escola de Higiene e Medicina Tropical
de Londres.
Em parte por isso, não houve novas drogas durante décadas. Um dos
medicamentos recomendados é a pentamidina, que trata a primeira fase do
T. b. Gambiana - ela foi desenvolvida em 1940. O melarsoprol, que trata a
fase final, foi desenvolvido em 1949 - é tóxico e causa a morte em
cerca de 5% dos casos.
Outra questão é que as empresas farmacêuticas não têm investido muito
dinheiro em pesquisas sobre a doença do sono: ela é uma das chamadas
doenças negligenciadas.
"A razão pela qual elas são chamadas de doenças negligenciadas é porque elas foram negligenciadas", diz Taylor.
"Porque são doenças das pessoas mais pobres dos países em
desenvolvimento, e, uma vez que leva milhões de dólares para desenvolver
uma droga para o mercado, não há o incentivo econômico para criar novos
medicamentos."
Isso parece ter mudado um pouco nos últimos anos. Algumas empresas
farmacêuticas até fizeram parcerias com organizações sem fins-lucrativos
que pressionam por novos remédios.
MacLeod diz que há duas novas drogas "em vias de desenvolvimento", que estão passando por testes.
"Recentemente, tem havido um esforço para encontrar drogas para essas doenças negligenciadas", afirma.
A doença do sono certamente continuará presente nos próximos anos. Mas,
ao revelar mais segredos do parasita, um dia poderemos ser capazes de
colocá-la para dormir de vez.
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