'Protocolo de guerra' é acionado 1,2 mil vezes em unidades de saúde do Rio em 6 meses; profissionais relatam traumas
Servidores foram treinados pela Cruz Vermelha com métodos adaptados de países em conflito. Cerca de 200 notificações de violência por mês levaram a fechamento parcial ou total de clínicas e postos.
Por Patricia Teixeira e Felipe Grandin, G1 Rio
29 de junho de 2016. Por volta das 8h da manhã, uma bomba explode no
estacionamento de uma clínica da família na Zona Norte do Rio. Por conta
da ação criminosa, a unidade de saúde fecha e centenas de pessoas ficam
sem atendimento naquele dia. Gerente da clínica há quatro anos, Cyntia
Guerra lembra do impacto do ocorrido sobre os profissionais.
“Foi o pior dia desde que comecei a trabalhar aqui. Era aniversário de
cinco anos da clínica. Tínhamos programado uma comemoração com culto
ecumênico, com toda comunidade convidada para estar com a gente. Os
moradores tinham feito um bolo para festejar.”
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Segundo Cyntia, há dois anos a violência no entorno aumentou, e os episódios de fechamento da unidade se tornaram frequentes.
'Protocolo de guerra'
Os números da Secretaria Municipal de Saúde comprovam o crescimento da
insegurança. De janeiro a julho de 2017, 1.266 notificações por eventos
de violência resultaram no fechamento parcial ou total das unidades de
saúde (Clínicas da Família e Centros Municipais de Saúde).
Quando o território não está seguro, entram em cena protocolos
adaptados de países em guerra, criados pela Cruz Vermelha, que treinou
os profissionais da secretaria.
Se o alerta for vermelho, significa que as unidades de saúde precisam
ser fechadas por conta dos conflitos e do perigo que correm
profissionais e usuários.
O alerta amarelo sinaliza que é necessária a suspensão de atividades externas, como visitas domiciliares e promoção de saúde.
No primeiro semestre deste ano, o município recebeu 908 alertas amarelos e 358 alertas vermelhos.
Apesar de existir desde 2009, o Programa Acesso Mais Seguro, como é
chamado, era tratado de forma sigilosa dentro da prefeitura até meses
atrás. Isso porque entendiam que a divulgação poderia associar a
situação do Rio com a mesma de países em guerra.
Na época, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha procurou a Secretaria
Municipal de Saúde por entender que a violência armada é crônica na
cidade. Propôs, então, adaptar os protocolos usados para proteger seus
médicos e voluntários ao redor do mundo à realidade carioca. Hoje, a
iniciativa reduz os danos sentidos pelas 1.247 equipes de saúde da
família que atuam na cidade. Mas eles continuam existindo.
“A violência afeta a gente diariamente. Fechar uma clínica é uma responsabilidade muito grande. Ir para casa e pensar que meus pacientes não vão ter esse acesso, isso é uma violência que a gente sofre que é invisível”, sinaliza Cyntia.
Impactos psicológicos
Para preservar os profissionais que trabalham em áreas de risco, a
Prefeitura do Rio mantém ainda outro programa em parceria com a Cruz
Vermelha. O Saúde Mental e Violência dá apoio aos profissionais de saúde
e paciente para lidar com o sofrimento emocional e os impactos
psicológicos de viverem e trabalharem em locais com conflito armado.
“Não acho que existam pessoas afetadas indiretamente. Todos somos
afetados diretamente pelo contexto da violência, morando ou não morando
num território onde se tem atores armados. Seja trabalhando ou seja
vivendo as pessoas são afetadas, pois o risco é inerente e o medo está
presente nessas áreas conturbadas.
Isso causa muito sofrimento nos
profissionais”, enfatiza Fernanda Prudêncio, coordenadora do Ciclos de
Vida da Subsecretaria de Atenção Primária, Vigilância e Promoção da
Saúde (Subpav).
Crise de choro e tristeza
Era apenas um dia de trabalho normal para o odontologista Ulysses
Costa, até que um grande tiroteio tirou a sossego das pessoas que
estavam dentro da Clínica da Família onde ele trabalha, na Zona Norte da
cidade.
Assustadas, muitas pessoas invadiram a sala do dentista, que
realizava um procedimento delicado em seu paciente.
A tensão se manifestou em Ulysses horas depois, com uma crise de choro e tristeza.
“Na hora, fiquei muito nervoso, mas consegui administrar tudo de forma
tranquila. Minha preocupação era o paciente. Quando cheguei em casa, que
sentei na minha cama, comecei a repassar o que tinha vivido e comecei a
tremer e a chorar. A gente fica abalado, mas no Rio não tem como fugir
muito desse cenário”, disse o dentista, que veio da Bahia.
“Cair num lugar desse, como o Rio de janeiro, me causou um estranhamento profundo, que mexeu muito comigo. O que ficou mais marcado foi a questão da violência”, completa o baiano.
Ulysses conta que, muitas vezes, ele e outros profissionais discutiram,
durante o período de formação, se valia a pena manter aquilo tudo ali.
“Querendo ou não, esse tipo de conflito constante acaba que dificulta
algum processo pedagógico da residência, porém, a gente chegou a
conclusão, durante as discussões, que isso também desperta outros
processos pedagógicos. Sem dúvida, a gente aprende muito. Então, temos
que aprender a sobreviver e a trabalhar nisso.”
Mesmo em condições difíceis, os profissionais de saúde das clínicas da
família não desistem de prestar o serviço à população das comunidades
menos favorecidas. Segundo eles, há um senso de responsabilidade que
motiva o trabalho.
"As pessoas do território quase não têm acesso aos serviços públicos.
Muitas vezes a clínica é o único (local) que elas podem recorrer",
explica Cyntia Guerra. "Quando cheguei, tinha muita rotatividade. Hoje,
temos cinco equipes completas".
Responsável pelos médicos de família que fazem residência, Rita Helena
Borret pensou em deixar o trabalho há um ano. Um dos residentes que
supervisionava estava fazendo uma visita quando começou um tiroteio.
Ele
teve que dormir na casa do paciente, pois não era seguro sair. Ela se
sentiu impotente diante do risco.
"Estava com tudo pronto para deixar a clínica. Mas acabei decidindo
ficar", diz Rita. Pelos meus colegas e pelas pessoas, que precisam da
gente. O que nos motiva todo dia a vir trabalhar é fazer parte de algo
maior, que é importante para tanta gente".
Para Hugo Fagundes, superintendente de saúde mental da Secretaria
Municipal de Saúde, é necessário se pensar cada vez mais em como
oferecer suporte para todas as pessoas envolvidas.
"Precisamos aumentar o diálogo com essas comunidades e com esses
profissionais da saúde. Muitas vezes, esses profissionais lidam com um
contexto muito sofrido também, muito em razão do sofrimento dos
pacientes. Porque existem pacientes que são acompanhados durante anos,
os médicos os conhecem pelos nomes, muitas vezes tratam crianças que
viram nascer. Então acabam vivenciando os sofrimentos desses pacientes
também", avalia Hugo.
1,6 mil internados
A rede municipal de saúde do Rio tem mais de 200 unidades de
atendimento. Os casos que exigem especialistas em psiquiatria e
psicologia são encaminhados para os 34 Centros de Atenção Psicossocial
(CAPS) distribuídos pela cidade.
Somente entre janeiro e abril deste ano, 1,6 mil pacientes foram
internados nos CAPS da capital. Ao todo, 15 mil pessoas estão
registradas no sistema de saúde mental da cidade.
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