Superbactérias avançam no Brasil e levam autoridades de saúde a correr contra o tempo
Taxas de resistência de micro-organismos a remédios aumenta, impulsionada por superlotação de hospitais e uso de antibióticos na pecuária; governo elabora plano de combate.
Por BBC
Bactérias que não respondem a antibióticos vêm aumentando a taxas
alarmantes no Brasil e já são responsáveis por ao menos 23 mil mortes
anuais no país, afirmam especialistas.
Capazes de criar escudos contra os medicamentos mais potentes, esses
organismos infectam pacientes geralmente debilitados em camas de
hospitais e se espalham rapidamente pela falta de antibióticos capazes
de contê-los. Por isso, as chamadas superbactérias são consideradas a
próxima grande ameaça global em saúde pública pela OMS (Organização
Mundial da Saúde).
"Estamos numa situação de alerta", diz Ana Paula Assef, pesquisadora do
Instituto Oswaldo Cruz, da Fundação Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), que faz
a estimativa sobre mortes anuais no país com base nos dados oficiais
dos Estados Unidos. No Brasil, ainda não há um compilado nacional sobre o
número de vítimas por bactérias resistentes.
"Sabemos que, assim como vários países em desenvolvimento, o Brasil tem
alguns dos maiores índices de resistência em determinados organismos.
Há bactérias aqui que não respondem mais a nenhum antibiótico", aponta
Assef.
Perigosas
Um exemplo é a Acinetobacter spp. A bactéria pode causar infecções de
urina, da corrente sanguínea e pneumonia e foi incluída na lista da OMS
como uma das 12 bactérias de maior risco à saúde humana pelo seu alto
poder de resistência.
De acordo com a Anvisa, 77,4% das infecções da corrente sanguínea
registradas em hospitais por essa bactéria em 2015 foram causadas por
uma versão resistente a antibióticos poderosos, como os carbapenems.
Essa família de antibióticos é uma das últimas opções que restam aos médicos no caso de infecções graves.
"Quando as bactérias se tornam resistentes a eles, praticamente não restam alternativas de tratamento", explica Assef.
Outro exemplo é a Klebsiella pneumoniae. Naturalmente encontrada na
flora intestinal humana, é considerada endêmica no Brasil e foi a
principal causa de infecções sanguíneas em pacientes internados em
unidades de terapia intensiva em 2015, segundo dados da Anvisa.
O mais preocupante é que ela tem se tornado mais forte com o passar do
tempo. Nos últimos cinco anos, a sua taxa de resistência aos
antibióticos carbapenêmicos (aqueles usados em pacientes já infectados
por bactérias resistentes) praticamente quadruplicou no Estado de São
Paulo - foi de 14% para 53%, segundo dados do Centro de Vigilância
Epidemiológica paulista.
"Os dados do Estado de São Paulo são um retrato do Brasil. É um
problema crescente e muito grave, principalmente pela rápida
disseminação dessas bactérias resistentes", diz Jorge Luiz Mello
Sampaio, professor de microbiologia clínica da USP e consultor da Câmara
Técnica de Resistência Microbiana em Serviços de Saúde da Anvisa.
Resistência
A capacidade de bactérias de passar por mutações para vencer
medicamentos desenvolvidos para matá-las é chamada de resistência
antimicrobiana -- ou resistência a antibióticos.
Essa extraordinária habilidade é algo natural: os remédios, ao atacar
essas bactérias, exercem uma "pressão seletiva" sobre elas, que lutam
para sobreviver. Aquelas que não são extintas nessa batalha são chamadas
de resistentes. Elas, então, se multiplicam aos milhares, passando o
gene da resistência a sua prole.
Esse processo natural pode ser acelerado por alguns fatores, como o uso
excessivo de antibióticos. Um agravante é o emprego desses medicamentos
também na agricultura, na pecuária e em outras atividades de produção
de proteína animal.
Muitos fazendeiros injetam regularmente medicamentos em animais
saudáveis como um aditivo de performance. Isso acelera a seleção de
bactérias no ambiente e em animais, que podem vir a contaminar humanos.
De acordo com especialistas, o número crescente de infecções - que
poderiam ser barradas por mais higiene e saneamento básico - também é um
problema, porque demanda maior uso de antibióticos, o que, por sua vez,
seleciona mais bactérias resistentes, perpetuando um círculo vicioso.
Um estudo encomendado pelo governo britânico no ano passado estima que
tais organismos irão causar mais de 10 milhões de mortes por ano após
2050. Atualmente, 700 mil pessoas morrem todos os anos vítimas de
bactérias resistentes no mundo.
Os efeitos na economia também podem ser devastadores. Países como o
Brasil estariam sob o risco de perder até 4,4% de seu PIB em 2050,
segundo estimativas do Banco Mundial.
Pecuária
Características específicas, como hospitais superlotados e alta
atividade agropecuária com uso de antibióticos, fazem do Brasil um
grande facilitador a bactérias resistentes.
O país é hoje o terceiro no mundo a mais utilizar antibióticos na
produção de proteína animal, atrás apenas da China e dos Estados Unidos -
e deve continuar nessa posição até pelo menos 2030, aponta um estudo
coordenado por Thomas P. Van Boeckel, da Universidade de Princeton
(EUA).
Consultado, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento diz
que atua para diminuir o uso desses produtos em animais. A pasta afirma
que já é proibido utilizar antibióticos como as penicilinas e as
cefalosporinas para melhorar o desempenho dos animais.
No ano passado, a colistina, um antibiótico considerado a última opção
de tratamento a bactérias resistentes também teve seu uso proibido em
animais saudáveis.
"O Brasil está comprometido com o tema", diz Suzana Bresslau, auditora
fiscal federal agropecuária da Coordenação de Programas Especiais do
ministério. "O país reconhece que se trata de uma ameaça global à saúde
pública e apoia os esforços para minimizar os riscos associados à
resistência antimicrobiana."
Na área hospitalar, a Anvisa monitora as infecções da corrente
sanguínea em UTIs, associadas ao uso de instrumentos para aplicação de
remédios, como o cateter. Somente em 2015, foram mais de 25 mil
infecções desse tipo - a maioria causada por bactérias com altos índices
de resistência.
"Estamos com problemas graves de Estados falidos, com recursos menores
para a saúde, hospitais com poucos funcionários, aquém do necessário
para cuidar dos pacientes. Às vezes, nessa situação, protocolos básicos,
como desinfecção das mãos, acabam passando", diz Sampaio.
"Quanto maior a sobrecarga de trabalho, maior é a taxa de infecção
hospitalar. Nesse cenário, há maior risco de selecionar bactérias
multirresistentes."
Combate
Desde dezembro, o Ministério da Saúde vem elaborando, com diferentes
pastas e a Anvisa, um plano nacional de combate a bactérias resistentes,
a pedido da OMS. O material deveria ter sido apresentado em maio na 70ª
assembléia da organização, em Genebra, na Suíça.
Questionado sobre o documento ter sido discutido no encontro e quais
seriam seus objetivos, o Ministério da Saúde não respondeu. De acordo
com informações enviadas à OMS, o plano estratégico está pronto, mas
ainda é necessário definir como será a implementação e o monitoramento
das ações.
A proposta brasileira está prevista para ser colocada em ação a partir
de 2018, com expectativa de conclusão até 2022. Comparado com outras
economias em desenvolvimento, o país está atrasado: a África do Sul
começou a colocar seu plano em prática ainda em 2014, enquanto a China
implementa o seu desde 2016. Já a Índia começou nesse ano.
O país é também um dos únicos Brics (sigla para Brasil, Rússia, Índia,
China e África do Sul) que ainda não disponibilizou o documento
publicamente no site da OMS, juntamente com a Rússia.
Consultada, a OMS disse que os países não são obrigados a
compartilharem seus planos, mas que ela encoraja a prática "como uma
forma de transparência e de boas práticas".
Mas enquanto o governo trabalha numa estratégia, bactérias aprimoram sua capacidade de sobreviver aos remédios mais poderosos.
Em outubro, a Anvisa encontrou no Brasil uma cepa da E. coli que tinha a
capacidade de trocar material genético com outras espécies de bactérias
e transferir o gene da resistência a outros organismos - não apenas à
sua prole.
Esse mecanismo a torna resistente a uma família de antibióticos chamada
polimixinas, que se tornaram a última escolha de médicos frente a
bactérias resistentes.
O novo mecanismo de resistência exemplifica o quanto o assunto é
urgente, diz Sampaio, da USP, para quem "a cada dia há uma surpresa" no
universo desses organismos.
"Elas se multiplicam a cada 20 minutos. É uma competição difícil. Nós
levamos anos para colocar um antibiótico no mercado, elas podem levar 20
minutos para mutarem e vencerem o remédio."
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