'Meu bebê se mutilava no útero': após sofrer de síndrome rara, chilena luta por aborto
Na 11ª semana de gestação, Paola Valenzuela descobriu condição que provoca sérias lesões no feto e culmina em sua morte; hoje, ela luta para que mulheres como ela possam interromper a gravidez.
Grávida de 11 semanas, a chilena Paola Valenzuela foi com o marido e o
filho, então com 9 anos, à sua primeira ultrassonografia. Uma tensão
então tomou conta da sala. A equipe médica evitou dar detalhes do que
acontecia, mas o menino quebrou o silêncio dizendo que não se importava
com o fato de que seu irmãozinho "não tinha nariz".
Paola, microbióloga então com 40 anos, descobria dois anos atrás que
ela e seu bebê sofriam da síndrome de bandas ou bridas amnióticas, uma
condição rara que provoca lesões ou até amputações no feto.
"Vi como meu filho se mutilava enquanto crescia", conta Paola hoje à
BBC Mundo, o serviço em espanhol da BBC. "Meu bebê chegou a ter todos os
órgãos fora do corpo."
Seu bebê estava fadado à morte, mas a lei chilena proíbe o aborto em
qualquer circunstância. Diante da pressão social, um projeto de lei
tramita no Senado para liberar a interrupção de gestação em três casos:
risco de morte para a mãe, inviabilidade do feto ou gravidez resultante
de estupro.
Mas Paola precisaria esperar por um aborto espontâneo ou pelo término
da gravidez, quando o recém-nascido inevitavelmente morreria. Ambas as
opções a amedrontavam.
"Sentia que meu filho estava morrendo, e cada dia de gravidez era uma
tortura. Mas também tinha medo de sofrer um aborto espontâneo, e ser
culpada por isso. Tinha medo de ser presa", lembra.
Condição fatal
As bridas ou bandas costumam aparecer no primeiro trimestre de
gestação, quando a membrana amniótica que envolve o embrião se rompe,
produzindo vários filamentos fibrosos. A tendência nesse caso é que
ocorra um aborto espontâneo.
Mas se o embrião sobrevive, vai ficando preso pelos cordões, que vão
provocado lesões em seu corpo à medida que ele cresce. Os fetos podem
sofrer ferimentos ou amputações no rosto, braços, pernas ou órgãos
vitais, como cérebro e coração.
Cientistas ainda não sabem a causa exata da condição, mas publicações
científicas sugerem predisposição genética ou fatores de risco que
afetam o sistema vascular, como o uso de drogas ou de misoprostol
(princípio ativo de medicamento para tratamento de úlcera, mas também
abortivo e, por isso, proibido no Brasil), além de tabaco e diabetes.
Em vários casos, há possibilidade de tratamento. Mas condições como a
de Paola - que ocorrem a cada 15 mil nascidos vivos, segundo a
Organização de Enfermidades Raras dos EUA - são mais complexas.
Nem sequer há a possibilidade de que o bebê sobreviva fora do corpo da mãe.
Semana 14
Quando estava na 14ª semana de gestação, Paola sofreu um sangramento e foi levada à emergência do hospital mais próximo.
De início, a equipe médica informou que o bebê tinha morrido. "Senti
algo terrível: tive esperança de que aquilo tivesse terminado."
Mas logo o especialista corrigiu: "Não, o coração ainda bate". Tiveram
dificuldade de notar a batida, explicaram, porque o coração estava fora
do corpo do feto. "Meu filho tinha o peito aberto", lembra ela.
Paola chegou a pensar em fazer um aborto no exterior, mas descartou a
ideia. "O que eu poderia fazer sozinha em outro país, a quem poderia
pedir ajuda?", questionou-se na época.
Ela, que é católica, lembra que seu marido chegou a dizer que Deus poderia castigar pela interrupção da gravidez.
"Mas àquela altura ele também já tinha entendido que não havia nada que pudéssemos fazer para salvar nosso filho."
'Não havia o que fazer'
Recomendaram-lhe que procurasse uma equipe médica da Universidade do Chile.
"Senti muita empatia ali, mas o estado do meu filho era tão horrível
que pediam desculpas ao descrevê-lo. Tinha o pescoço e a cabeça
abertos."
O médico Mauro Parra, que a atendeu, disse que os intestinos também estavam fora do corpo do feto.
"Fizemos a análise com 21 semanas de gravidez. Do ponto de vista médico, não havia o que fazer", explica à BBC Mundo.
Parra já tratou outros casos da síndrome e conta que é possível operar
malformações ou alterações estruturais, casos de bridas menores, onde há
uma perna ou um braço afetado. Nesses casos, a brida é cortada numa
cirurgia, evitando-se a amputação da extremidade.
Mas no caso de Paola a gravidade das lesões impossibilitava qualquer
intervenção. Após o nascimento, tampouco havia alternativa. Seria
impossível recolocar o coração dentro do corpo, porque não havia espaço
no tórax.
"Em casos como esse, mesmo que o cirurgião conseguisse fabricar um
tórax e colocasse o coração ali, o bebê não sobreviveria. As condições
não permitiram que ele desenvolvesse os pulmões, ele não respiraria",
detalha.
A equipe ofereceu apoio psicológico e o adiantamento do parto para a
37ª semana, quando a lei chilena já não criminaliza a mulher.
"Poderíamos assim diminuir um pouco o dano psicológico dessa espera
eterna. Mas para uma mulher naquelas circunstâncias, isso não era nada",
comentou Parra.
Paola buscou assistência psicológica da ONG Miles, que apoia a
descriminalização do aborto no Chile, e acabou se envolvendo com a
causa.
Em maio, quando a morte de seu filho completava dois anos, ela
apresentou seu caso durante uma audiência pública da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos. A sessão foi solicitada pela Miles e
outras entidades, que criticam a demora na tramitação do projeto de lei
para descriminalizar o aborto.
Uma sala em silêncio
Paola completou 22 semanas de gravidez. "Após uma noite de contrações,
cheguei correndo ao hospital. Às 7h30, meu filho nasceu", contou.
Ela lembra que todos na sala de cirurgia ficaram em silêncio.
"Perguntei aos médicos se seu coração ainda batia, e me disseram que
ele nasceu morto". Perguntaram-lhe se ela queria ver o bebê, que foi
descrito "como uma massinha, como um tumor".
"Meu marido disse que não. Eu tampouco queria ficar com aquela imagem.
Sabia que não tinha sua carinha, mas me lembrei de que estava inteiro
até a cintura, e então pedi que me mostrassem apenas as pernas.
Assim, o
cobriram, se aproximaram de mim e vimos suas perninhas."
O bebê nasceu no dia 29 de maio e recebeu o nome de Jesus.
De acordo com a ciência, a capacidade de sentir dor não se desenvolve
até a 24ª semana de gestação. E as bridas, como são parte do feto e
provocam lesões lenta e progressivamente, não causam sofrimento. Mas a
mãe sentia o contrário.
"Todos me diziam que não (sentia dor), mas como uma mãe sente, eu acho
que ele sentia tudo desde o primeiro dia", relata. "Pensava o tempo todo
que ele estava sendo cortado. E pedia, por favor, que não se
movimentasse, pois estaria se ferindo."
Lei em discussão
Na última semana, a Comissão de Constituição do Senado chileno aprovou a
descriminalização do aborto em casos de risco para a mãe e
inviabilidade do feto, mas ainda falta debater o caso de estupro. O
projeto de lei segue em tramitação.
Segundo Parra, mesmo numa "legislação limitada como a que pode ser aprovada, o caso de Paola seria contemplado sem discussão".
Em um país com cerca de 250 mil gestações por ano, o médico estima que
ocorram de cinco a dez casos como o dela. No dia anterior à conversa com
a BBC Mundo, o cirurgião tinha inclusive atendido um deles.
"Era um enorme defeito na cabeça, no rosto", contou. "Uma mãe jovem, e o
que se pode oferecer? Nada.
Nada além de esperar que ele nasça."
No Brasil, a legislação permite interromper a gravidez quando há risco
para a mulher, em caso de estupro ou se o feto for anencéfalo (sem
cérebro).
Além disso, o Supremo Tribunal Federal (STF) deu mais um passo rumo à
descriminalização do aborto em novembro passado quando decidiu, sobre um
caso isolado, que praticar aborto nos três primeiros meses de gestação
não é crime.
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