Os brasileiros 'desenganados por médicos' e que vivem e trabalham com doenças raras
Com redes de ajuda mútua e novos serviços de informação, pacientes contrariam previsões de 'dias contados' e reforçam independência.
A estudante Bárbara Nascimento, de 14 anos, realizou um sonho neste ano: ir a um show de Justin Bieber.
Ao lado da mãe, Rosângela, a adolescente não conteve a alegria ao ver o
ídolo de perto em São Paulo. "O show foi lindo", disse.
Além da mãe, estava com ela outro "companheiro inseparável": o cilindro
de oxigênio de seis quilos e rodinhas, enfeitado com imagens do cantor
canadense.
Bárbara tem Niemann-Pick B, uma doença genética que afeta os pulmões - e apenas um em cada 500 mil nascidos vivos no mundo.
A adolescente integra um grupo estimado em 13 milhões de pessoas só no
Brasil, o de portadores de doenças raras, que atingem até 65 pessoas em
cada 100 mil nascidos vivos.
Existem entre 6 mil e 8 mil doenças raras, que geralmente são crônicas, degenerativas e muitas vezes levam à morte precoce.
Se na era pré-internet esses pacientes sofriam em busca de diagnósticos
corretos e chegavam a ser desenganados por médicos, hoje, com mais
informações disponíveis, muitos trabalham e estudam.
Alguns foram além e já se casaram, cursaram faculdades e hoje vivem de
forma independente, algo quase impensável no passado recente.
'Doença dos magros'
Um exemplo é o potiguar Roberto Guedes, de 30 anos. Ele tem
lipodistrofia generalizada congênita, síndrome genética apelidada no Rio
Grande do Norte como "doença dos magros", por desregular o nível de
gordura no corpo e alterar a aparência dos afetados.
Como várias enfermidades raras, a doença não tem cura, apenas
tratamentos paliativos. De tão incomum, não há estimativa precisa sobre
casos no mundo - estima-se que haja apenas 250.
Uma das principais características da doença, também conhecida como
síndrome de Berardinelli-Seip, é o desenvolvimento de diabetes grave.
Com um mês de vida, Roberto tinha um nível de triglicérides (gorduras)
no sangue de 810 - em adultos, o índice normal gira em torno de 170.
Médicos disseram à família que ele não passaria dos seis meses de vida.
O diagnóstico correto só veio aos dois anos de idade - junto com a
previsão de que Roberto viveria no máximo até a adolescência.
"Tivemos de fazer uma reviravolta, com medicamentos e novos hábitos
alimentares", conta Márcia, mãe de Roberto. "Isso fez com que ele
pudesse ter uma melhor qualidade de vida, podendo frequentar a escola e,
posteriormente, a faculdade."
Roberto formou-se em Administração Financeira e hoje trabalha no
Sebrae. Casou-se em fevereiro deste ano, no dia mais emocionante da vida
para ele e a família.
"Sofri bastante preconceito na vida, mas sempre tive amigos que me
defenderam. Meus pais me criaram como uma pessoa normal, mesmo tendo
certos limites", diz Roberto.
"Hoje me casei e saí de casa (dos pais). A vida de casal está sendo uma
experiência valiosa. Cuido da alimentação e penso em viver mais uns 60
anos."
'Tudo é aprendizado'
Luis Eduardo Próspero, de 26 anos, perdeu a visão aos dez anos. Tem
apenas 1,32 metro de altura e dificuldade de locomoção - percorre
sozinho apenas distâncias curtas.
Dudu, como é conhecido, também é graduado em Direito e está no terceiro
ano de Administração. Tem emprego na Prefeitura de Itanápolis (SP),
onde vive, e toca sozinho suas tarefas cotidianas: alimentação, higiene,
estudos.
Ele tem um tipo raro de mucopolissacaridose (MPS), doença genética que
impede o processamento de moléculas de açúcar - e atinge, em média, uma
em cada 25 mil pessoas. Um irmão de Dudu morreu aos seis anos em
decorrência da doença.
Diziam que ele não chegaria à adolescência, mas aos 13 anos passou a
integrar o estudo de um novo remédio e a doença parou de avançar.
"Procuro ter o máximo possível de independência, viver feliz e levando
alegria aos outros. Sempre tomo as coisas que acontecem comigo como
aprendizado, e tudo me faz crescer", diz.
Grupos de ajuda
A redução das distâncias com o desenvolvimento da comunicação facilitou
a troca de experiências entre pessoas que convivem com doenças raras.
Pelas redes sociais, Marianna Gomes, de 23 anos, faz a ponte entre
portadores de fibrodisplasia ossificante progressiva (FOP), desordem que
transforma tecidos conjuntivos em ossos, imobilizando o indivíduo.
No mundo, estima-se que a doença atinja uma pessoa a cada 2 milhões de
nascidos vivos. São apenas 83 casos conhecidos no Brasil. Não tem
tratamento específico nem cura.
Passando por fase mais aguda da doença, Mariana "travou" os braços e
não consegue andar. Precisa de ajuda para se alimentar. Ainda assim, é
formada em Psicologia, cursa Administração e inglês (à distância).
Trabalhou até pouco tempo como atendente de farmácia.
E escreve, publica vídeos e troca informações sobre a doença por meio
da FOP Brasil, fundada em 2004 como uma rede de apoio para pacientes.
"Procuramos sempre ajudar os pacientes de alguma forma, com campanhas
na internet ou contato direto. Nossa rede se fortalece a cada dia",
afirma.
Contra a desinformação
Além do custo alto de tratamento - pacientes recorrem com frequência à
Justiça para conseguir bancar o atendimento pelo SUS (Sistema Único de
Saúde) -, famílias que enfrentam doenças raras se deparam com o
desconhecimento dos médicos sobre as enfermidades.
"Isso é um problema que toda mãe de filho com doença rara passa: chegar
ao hospital e se deparar com o médico acessando o Google para entender
sobre doenças e procedimentos", conta Rosângela Nascimento, mãe da
adolescente Bárbara.
Uma iniciativa recente que busca minimizar esse cenário é a Linha Rara, o primeiro 0800 de doenças raras no Brasil.
Parceria entre ONGs portuguesas, Instituto da Criança do Hospital das
Clínicas (SP) e o Instituto Vidas Raras, do Brasil, é um canal para
informações sobre essas doenças, centros de referência para tratamento,
grupos de apoio, procedimentos burocráticos e novidades em pesquisas.
Desde a criação do serviço, em fevereiro deste ano, foram mais de mil
atendimentos, por telefone (0800 006 7868) e e-mail
(linharara@rarissimas.org.br).
"Os pacientes já vêm com alguma investigação, passaram por muitos
médicos e costumam estar ansiosos por uma resposta. Temos que explicar
que não podemos fazer diagnóstico virtual, análise de exames", explica a
atendente do serviço Érica Salles, citando impedimentos previstos no
Código de Ética do Conselho Federal de Medicina.
Os atendentes consultam especialistas e gestores, e são preparados para
diferenciar doenças raras de desordens de difícil diagnóstico, que em
geral são neuropatias (funcionamento anormal dos nervos) ou doenças
reumatológicas.
"Também detectamos problemas burocráticos que essas pessoas enfrentam
ao passar por algum especialista. Tempo de demora, documentação
necessária. Indicamos os serviços e como chegar até eles", diz Salles.
Para Rosely Maria, assessora do Instituto Vidas Raras, a maior
circulação de dados sobre doenças raras impacta diretamente o cotidiano
dos doentes.
"Hoje, sabe-se que as informações disponíveis e a conscientização sobre
as doenças, mostrando os cuidados adequados a tomar, têm levado estes
pacientes a ter mais tempo de vida", afirma.
É o que anima Bárbara, a adolescente de 14 anos do show de Justin
Bieber. Após quatro cirurgias e mais de 40 internações, ela está no nono
ano do colégio e pensa em ser médica pediatra.
Deseja também crescer sem tantos remédios, oxigênio em casa e dores nas
pernas e braços. E exercita a esperança, palavra sempre presente no
vocabulário dos "raros". "Sonho que vou ser curada um dia."
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