‘Cartas na Mesa’: o jogo para discutir as últimas vontades
A
Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG) deu um passo
ousado na abordagem de um tema que ainda é tabu para a maioria: como
discutir quais são as vontades do paciente no final de sua vida? No caso
de uma doença crônica grave, a progressão da enfermidade pode levar o
doente a um estado em que não poderá mais ser consultado. Também não se
pode ignorar o risco de um acidente vascular encefálico que, de uma hora
para a outra, restrinja a capacidade do indivíduo.
Fundamental ter uma
coisa em mente: só será possível respeitar qualquer vontade se houver
disposição para tocar nesta tecla tão sensível. O jogo “Cartas na Mesa”,
composto de um baralho com 36 cartas, pretende justamente facilitar a
conversa sobre que desejos a pessoa gostaria de ver atendidos. Para o
médico José Elias Soares Pinheiro, presidente da SBGG, caberá aos
geriatras levantar a questão nos consultórios e trabalhar para dar mais
transparência ao debate. “O ideal é que o médico comece a tratar do
assunto numa consulta de rotina. Afinal, trata-se de um processo para
garantir que o paciente possa ser dono de suas próprias decisões até o
fim da vida”, argumenta.
Há
duas maneiras de jogar: sozinho ou em dupla. No jogo individual, o
primeiro passo é ler as 36 cartas que expressam desejos. Há frases de
todo tipo: “Quero conversar sobre doação de órgãos”; “Quero minha
família e meus amigos perto de mim”; “Quero a companhia dos meus animais
de estimação”; “Quero conversar sobre minhas necessidades espirituais”;
“Quero ser visto apenas pelas pessoas que eu escolher”; “Quero manter o
senso de humor ao meu redor”. Em seguida, é preciso separá-las em três
montes. No primeiro, ficam os desejos considerados muito importantes; no
segundo, os que são mais ou menos relevantes; no terceiro, os que são
menos importantes. Há ainda a carta “vontade especial”, caso haja uma
demanda que não esteja entre os assuntos relacionados. Além de refletir
sobre as escolhas, elas devem ser compartilhadas com o círculo mais
próximo.
No
jogo em dupla, usam-se de preferência dois baralhos: um para o paciente
e o outro para seu “representante de saúde” – quem estará presente para
falar em seu nome. Cada um procede da mesma forma, formando três
montes. No entanto, enquanto o paciente faz suas escolhas, como no jogo
individual, seu “porta-voz” tem uma tarefa mais difícil: deve tentar se
colocar no lugar do paciente e separar as cartas como acha que ela
faria. Em seguida, os dois discutem os consensos e as divergências. O
jogo foi criado pela Coda Alliance – organização voltada para o
planejamento terapêutico no fim da vida – e, em inglês, se chama “Go
wish”. A SBGG traduziu e adaptou o texto da versão brasileira. Cada
baralho custa 20 reais e é vendido no site da entidade.
A
geriatra Claudia Burlá, especialista em medicina paliativa, afirma que a
iniciativa da SBGG é uma ação de vanguarda. Ela lembra que, desde 2012,
o Conselho Federal de Medicina reconhece as diretivas antecipadas de vontade,
isto é, o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo
paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no
momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente,
sua vontade: “a geriatria é uma arena excelente para esse debate,
porque convive com doenças crônicas degenerativas. O jogo é para
facilitar o início dessa conversa e, pela minha experiência, posso
garantir que as pessoas querem falar disso. As grandes decisões da nossa
vida devem ser tomadas quando estamos bem, lúcidos e felizes. É assim
que garantimos nosso protagonismo e o respeito à nossa capacidade de
autodeterminação”.
Está na hora de abrir o jogo.
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