segunda-feira, 10 de abril de 2017

Por que famílias pobres também desperdiçam comida no Brasil?

Sobras em boas condições muitas vezes são vistas com preconceito, aponta pesquisador; cultura da fartura e hospitalidade contribuem para desperdício.

"Sua comida não é lixo." O alerta é do Waste and Resources Action Programme, mais conhecido como Wrap, criado na Grã-Bretanha há 17 anos para combater o desperdício de alimentos. 

Mas vale também para o Brasil, onde uma carga equivalente a 625 mil caminhões cheios de verduras, frutas, e legumes bons para o consumo vai parar no lixo a cada ano. Este é o tamanho do desperdício de comida no país: 41 mil toneladas anuais. 

Toda essa comida jogada fora seria suficiente para acabar com a insegurança alimentar no Brasil, de acordo com o Centre of Excellence Against Hunger (Centro de Excelência contra a Fome, em inglês) do Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas. 

Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2013, o Brasil somava naquele ano 52 milhões de pessoas sem acesso diário à comida de qualidade e em quantidade satisfatória. Dos 65,3 milhões de domicílios registrados, 22,6% estavam em quadro de insegurança alimentar. 

"É preciso combater o desperdício em todas as etapas da produção, comercialização e consumo", disse à BBC Daniel Balaban, diretor do centro. "Reduzir o desperdício na fase de consumo está ao alcance de todos."

Dinheiro no lixo

Uma estimativa do Instituto Akatu, que trabalha há 16 anos com ações de incentivo ao consumo consciente, indica que o brasileiro desperdiça, em média, 205 gramas de alimento por dia e que cada família - de três integrantes, de acordo com o padrão do IBGE - joga no lixo mensalmente R$ 171 em alimentos. 

Na Grã-Bretanha, descartar comida em condições de consumo representa um prejuízo mensal equivalente a 60 libras (R$ 231) para uma família média. 

"Um consumidor são vários: ele, a família e os amigos. Todos podem mobilizar outras pessoas. O consumo tem impacto e o consumidor, individualmente, causa impacto econômico", afirma Hélio Mattar, diretor-presidente do Instituto Akatu. 

O analista da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Gustavo Porpino, que fez estudos sobre o comportamento do consumidor nos EUA e no Brasil, afirma que não são apenas os mais ricos que esbanjam alimentos no Brasil. 

O desperdício, segundo ele, impressiona nas famílias de classe média baixa, que representam a maior fatia da população brasileira. 

Segundo o analista da Embrapa, contribuem para o desperdício dois hábitos brasileiros - a fartura e a hospitalidade. 

"Sempre pode chegar alguém" e "é melhor sobrar do que faltar" foram as frases que Porpino mais ouviu de donas de casa durante sua pesquisa, realizada em 2015. 

As sobras são vistas com preconceito, e isso alimenta o desperdício. "Muitas mulheres me disseram que a família não gosta de 'comida dormida' e que o arroz tem que ser sempre fresquinho", conta. 

Outra constatação feita pelo pesquisador diz respeito ao papel do sentimento de culpa na cadeia do desperdício de comida. 

Essa culpa explicaria o fato de as sobras serem dadas também para cães e gatos, que podem ser dos vizinhos ou de rua. 

Outras vezes, o que sobra é guardado em recipientes impróprios, fica esquecido por dias na geladeira e acaba indo para o lixo.

Qual o seu perfil?

Porpino estabeleceu cinco perfis de mães responsáveis pela alimentação de suas famílias, após comparar o comportamento de consumidores de baixa renda no Brasil e nos EUA: 

Mães carinhosas 

Elas adoram prover a família e alimentá-la como forma de demonstrar afeto e cuidado. 

Acabam se excedendo na compra de guloseimas e das chamadas comfort foods (com valor sentimental ou nostálgico e quase sempre com alto nível calórico). 

Sua família belisca muito entre as refeições e isso acaba por aumentar a quantidade de alimentos que sobram do jantar, de acordo com Porpino. 

"Que tal um lanchinho?", é a pergunta que melhor define essas mães. 

Cozinheiras abundantesEssas mães costumam preparar grandes porções de alimentos. 

As cozinheiras abundantes valorizam a fartura à mesa, por status ou hospitalidade. 

A mesa farta seria uma maneira de demonstrar que problemas econômicos não abalam a família ou um meio de dar boas vindas a quem chega de surpresa. 

Sua frase típica: "É melhor sobrar comida do que faltar". 

Desperdiçadoras de sobrasElas valorizam o que consideram "comida fresca", preparada diariamente. 

Reaproveitar alimentos não faz parte dos seus hábitos. 

Os dias em que mais jogam sobras fora são as quintas e sextas-feiras. Isso porque os fins de semana são de reunião da família e a refeição tem de ser farta e especialmente preparada. 

"Comer o que sobrou de ontem é muito mesquinho. Prefiro o arroz fresquinho", é o lema das desperdiçadoras de sobras. 

ProcrastinadorasAs procrastinadoras guardam as sobras de comida na geladeira. 

O pesquisador da Embrapa constatou que elas fazem isso mesmo sabendo que provavelmente o que sobrou não será consumido posteriormente. 

Na sua geladeira há vários potinhos, panelas e recipientes com restos. Mas eles acabam mesmo no lixo. 

Estas mães têm um forte sentimento de culpa que as faz pensar algo como: "Jogar comida fora em um mundo com tanta gente faminta é pecado. Tenho que guardar o que sobrou". 

Mães versáteisElas fazem alimentos em menor quantidade e reinventam pratos a partir do que sobrou.
Também planejam a compra dos alimentos. 

A quantidade de comida que vai ser preparada é cuidadosamente calculada. 

"O arroz que sobrou vai virar um ótimo risoto e as sobras dos legumes podem se transformar numa fritada", costumam dizer as mães desse grupo, que também se destacam pela criatividade.

Brasileiras x americanas

Ao comparar os grupos pesquisados no Brasil e nos Estados Unidos, Porpino constatou que as brasileiras são majoritariamente desperdiçadoras de sobras (42%), enquanto o perfil mais comum entre as americanas é o das cozinheiras abundantes (30%). 

Entre as brasileiras, o segundo perfil mais corriqueiro é o das cozinheiras abundantes (21%). 

As versáteis aparecem em terceiro lugar, com 17%, e as mães carinhosas representam apenas 8%. 

Ao analisar as americanas, Porpino verificou um empate, no segundo lugar, entre as mães carinhosas (20%) e as procrastinadoras (20%). 

No terceiro lugar, outro empate: versáteis e desperdiçadoras de sobras, com 15%.

Dicas de especialistas

O Centre of Excellence Against Hunger destaca que é possível reduzir drasticamente o desperdício de alimentos em casa e, com isso, economizar dinheiro do orçamento doméstico. 

Daniel Balaban, diretor do centro, cita iniciativas como maior planejamento das compras, elaboração de cardápios semanais e mudança no padrão brasileiro de refeições com fartura excessiva. 

"Planejar a compra faz toda a diferença. Fazer pequenas compras é melhor para economizar e desperdiçar menos", diz Hélio Mattar, do Instituto Akatu. 

Porpino, por sua vez, lembra a importância de usar recipientes herméticos para guardar as sobras de arroz e feijão. 

"O que não for consumido nos próximos dois dias deve ser congelado", aconselha. "Também é bom separar os alimentos a serem reaproveitados em pequenas porções." 

Ele sugere ainda que as sobras seja "reinventadas em novos pratos" em casas com mais moradores, para que a família "não tenha preconceito em consumir a chamada comida 'dormida'". 

Para ajudar a combater o desperdício de comida, a Embrapa lançou no Brasil o aplicativo Food Keeper com dicas para manter o frescor e a qualidade dos alimentos. 

A ideia foi de Porpino, que traduziu e adaptou para a realidade brasileira o app criado originalmente pelo Departamento de Ciência dos Alimentos da Universidade de Cornell e pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA). 

Alimentos e bebidas aparecem distribuídos em 14 categorias: aves, bebidas, carne, comida de bebê, condimentos e molhos, congelados, delicatessen e comidas prontas, frutos do mar, grãos, feijões e massa, industrializados de longa duração, laticínios e ovos, legumes e frutas, proteínas vegetarianas, pães, tortas e bolos. 

Sem verba da Embrapa para divulgar o aplicativo, Porpino diz ter se surpreendido com a rápida popularização da iniciativa, que decolou com ajuda das redes sociais: desde o início de 2017, o Food Keeper em português foi baixado 131 mil vezes. 

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